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ARTIGO ORIGINAL

Avaliação pós-operatória imediata da influência da desinserção da valva tricúspide no tratamento da comunicação interventricular

Francisco Fernandes MOREIRA NETO0; Ricardo Nilson Sgarbieri0

DOI: 10.1590/S0102-76381998000400006

RESUMO

Apesar da valva tricúspide e suas cordas algumas vezes perturbarem a visão das margens da comunicação interventricular, a preocupação sobre a insuficiência valvar pós-operatória tem levado alguns cirurgiões a evitar a técnica de desinserção e sua posterior ressuspensão. Analisamos, retrospectivamente, 34 casos de pacientes portadores de comunicação interventricular divididos em dois grupos comparáveis estatisticamente quanto ao sexo, idade e peso, além de lesões associadas, nos quais foi realizada correção cirúrgica da CIV sem (Grupo I, com 19 pacientes) e com (Grupo II, com 15 pacientes) a utilização da técnica de desinserção da valva, analisando a insuficiência tricúspide pós-operatória e a incidência de CIV residual e distúrbios da condução atrioventricular. Foi realizada a desinserção das cúspides anterior e septal da valva tricúspide junto ao anel e, posteriormente, ressuspensos com sutura contínua de prolene 6-0. O grau de insuficiência tricúspide pós-operatória e CIV residual foi avaliado por ecocardiograma realizado no pós-operatório imediato e no dia da alta hospitalar. Os resultados mostraram ausência de insuficiência tricúspide (IT) em 12 pacientes do Grupo I e em 10 pacientes do Grupo II; presença de insuficiência discreta em 5 pacientes do Grupo I e 4 pacientes do Grupo II; e insuficiência leve e moderada em 2 casos do Grupo I e em 1 caso do Grupo II. Nenhum dos pacientes apresentou insuficiência grave. Apesar do número reduzido de casos, não houve diferença significativa na incidência da IT. Houve apenas um caso de CIV residual no Grupo I, que evoluiu com fechamento espontâneo. O bloqueio atrioventricular ocorreu em apenas uma paciente do Grupo II, que reverteu espontaneamente. A mortalidade foi de 10,5% no Grupo I e de 6,6% no Grupo II. Os autores concluem que a desinserção e ressuspensão e sutura da valva tricúspide no tratamento da comunicação interventricular não afeta a competência da valva tricúspide nem aumenta a incidência de comunicação interventricular residual ou bloqueio atrioventricular.

ABSTRACT

Although the tricuspid valve and its attachments can sometimes obscure the margins of the ventricular septal defect from the vision of the surgeon, concern for valvular competence has made surgeons hesitate to take down the tricuspid valve. In this paper, the records of 34 patients divided into two groups (comparable by gender, age and associated anomalies) were reviewed retrospectively. Treatment of the ventricular septal defect was done without (Group I, with 19 patients) and with (Group II, with 15 patients) takedown of the tricuspid valve to determine the degree of the tricuspid regurgitation and also the incidence of residual ventricular septal defects and atrioventricular block. The anterior and septal leaflets of the valve were taken down at the annulus and resuspended after VSD repair with running 6-0 polypropylene sutures. The degree of valvular regurgitation and the presence of residual VSD were determined by echo done on post-operative day one and at the the patient's discharge. Valvular regurgitation was graded as none in 12 patients of the Group I and in 10 patients of the Group II; trivial regurgitation in 5 patients of Group I and 4 of Group II; mild to moderate regurgitation in 2 cases of Group I and 1 in Group II. No patient had severe regurgitation. Even with a small number of cases, there was no statistically significant difference between the groups. There was only one case of residual VSD in Group I with spontaneous closure. The mortality in Group I was 10.5% and 6.6% in Group II. The authors conclude that takedown and re-suspension of the tricuspid valve in VSD repair surgery does not adversely affect valve competence neither increases the incidence of residual VSD or the incidence of A-V block.
INTRODUÇÃO

A comunicação interventricular é a cardiopatia congênita mais freqüente e sua correção cirúrgica vem sendo realizada desde 1954, quando LILLEHEI et al. (1), em Minneapolis, realizaram pela primeira vez o fechamento a céu aberto com o auxílio da circulação cruzada. Já em 1955, KIRKLIN et al. (2) realizaram o primeiro fechamento com o auxílio da circulação extracorpórea por ventriculotomia direita. Em 1957, LILLEHEI et al.(1) descreveram, pela primeira vez, que seria possível o fechamento da CIV por atriotomia direita.

Baseado na localização da comunicação interventricular (3) o cirurgião decide sobre a mais adequada via de abordagem para cada caso. Assim sendo, podem ser utilizadas como vias de acesso para a correção da CIV a abordagem transatrial, a ventriculotomia direita ou esquerda, a arteriotomia pulmonar, a aortotomia ou a abordagem combinada.

O fechamento da CIV torna-se, portanto, um assunto de grande interesse não somente pela sua grande freqüência, mas também pela sua variabilidade anatômica e diversificação da técnica e tática operatórias utilizadas. A abordagem através da ventriculotomia direita pode ser usada para o fechamento da CIV conoventricular, com excelente resultado, até mesmo em pacientes com aumento na resistência vascular pulmonar, sem importante disfunção ventricular direita. Ela tem a vantagem de que a base da válvula não coronária da valva aórtica ( que corresponde à área do trígono direito e do Feixe de His), pode ser observada. Tem a desvantagem, no entanto, de que a cicatriz no ventrículo direito está associada com maior incidência de bloqueio de ramo direito e pode resultar em maior freqüência de arritmias ventriculares no pós-operatório tardio.

A abordagem por atriotomia direita dá condições ótimas de visão para a correção de praticamente todos os tipos de CIV e permite ainda a ressecção de estenose pulmonar associada. Através dela podemos evitar uma cicatriz no VD e, assim, menor incidência de bloqueio de ramo direito e arritmias ventriculares.

Causou-nos especial interesse a avaliação da técnica de fechamento transatrial, que é, provavelmente, a técnica mais utilizada atualmente. Apesar da supracitada vantagem de fácil visão do septo interventricular, existe uma variação técnica, que é a desinserção da cúspide septal da valva tricúspide, (Figura 1) e que alguns cirurgiões já incorporaram como parte de sua rotina.


Fig. 1 - Representação esquemática da técnica de desinserção e sutura da valva tricúspide.

É feita a revisão da nossa experiência com a técnica de fechamento da CIV por via transatrial e verificação se a técnica de desinserção das cúspides da tricúspide e posterior sutura acarretou maior incidência de insuficiência tricúspide, de comunicação interventricular residual ou aumento de incidência de distúrbios da condução atrioventricular.

CASUÍSTICA E MÉTODOS

Para tanto foram estudados retrospectivamente, no período de 1994 a 1996, 34 correções de comunicações interventriculares por via transatrial. Em 19 casos foi realizada a técnica convencional sem desinserção (Grupo I) e nos 15 restantes foram realizadas desinserções (Grupo II). A escolha pela técnica de desinserção foi baseada na melhor visão das bordas da CIV e na preferência do cirurgião.

A média de idades no Grupo I foi de 3,5 anos, variando de 0 a 12 anos, e o sexo masculino predominou em 57,8% (11 casos contra 8 do sexo feminino). A média de idades do Grupo II foi de 4,9 anos, variando de 0 a 19 anos, e o sexo masculino também foi predominante em 53,3% (8 casos em 15).

A localização da CIV foi perimembranosa em 90% do Grupo I e 93% do Grupo II e as lesões associadas foram:

1. Comunicação interatrial: 1 caso em cada grupo;
2. Persistência do canal arterial: 2 casos no Grupo I e 1 caso no Grupo II;
3. Estenose pulmonar 1 caso no Grupo I e 2 casos no Grupo II;
4. Situs inversus em 1 caso do Grupo II;
5. Tetralogia de Fallot em 6 casos do Grupo I e em 4 do Grupo II;
6. Dupla via de saída do VD em 1 caso do Grupo I e em 3 casos do grupo II.

Não foram incluídos os casos de defeito do septo atrioventricular, transposição das grandes artérias ou truncus arteriosus.

Técnica Cirúrgica

Foi utilizada a circulação extracorpórea convencional com canulação das cavas e atriotomia direita longitudinal. No Grupo I (sem desinserção) o fechamento da CIV foi feito diretamente com retalho de pericárdio bovino e sutura contínua de fio de polipropilene 4 ou 5-0. Já no Grupo II, foi realizada desinserção da cúspide septal e parte da anterior junto ao anel da valva tricúspide. A incisão e a extensão da desinserção foi maior que a descrita por FREENKNER et al. (4), que realizavam uma incisão apenas na cúspide septal de aproximadamente 1,5 a 2 cm. Foi realizado o fechamento da CIV, com sutura contínua. Em seguida, sutura das cúspides da valva tricúspide em sua posição original com o uso de fio de polipropilene 6-0. A atriorrafia foi realizada com fio de polipropilene 5-0.

Não houve diferença significativa no tempo de anóxia e tempo de CEC (62 ± 10 min do Grupo I e 57 ± 12 min para o Grupo II).

A complicação trans-operatória foi o bloqueio atrioventricular total em apenas 1 caso do Grupo II, que se mostrou temporário e reverteu espontaneamente no 1º dia de pós-operatório.

A avaliação ecocardiográfica pós-operatória foi realizada no PO imediato, ainda na UTI e, posteriormente, comparada com a realizada por ocasião da alta hospitalar, em geral no 8º dia de internação.

RESULTADOS

O resultado da avaliação ecocardiográfica (do pós-operatório imediato e da alta), foi igual, no que se refere à avaliação da regurgitação tricúspide em todos os pacientes. Não foram feitas as avaliações de alta de três pacientes; dois dos quais faleceram no primeiro dia de pós-operatório, com crises repetidas de hipertensão pulmonar (sendo um de cada grupo), e de um paciente que faleceu em septicemia após mediastinite purulenta estafilocócica (do Grupo I) no 10º dia de pós-operatório.

Os dados do ecocardiograma realizado no POI estão no Gráfico 1.

GRÁFICO 1
CORREÇÃO DA COMUNICAÇÃO INTERVENTRICULAR



1. Nenhum paciente de ambos os grupos apresentou insuficiência tricúspide grave.
2. Dois pacientes do Grupo I e 1 paciente do Grupo II apresentaram insuficiência tricúspide de leve a moderada;
3. Cinco pacientes do Grupo I e 4 pacientes do Grupo II apresentaram apenas escape valvar discreto.
4. Doze pacientes do Grupo I e 10 pacientes do Grupo II não apresentaram insuficiência tricúspide.

Dos 3 pacientes que faleceram, foi realizada necrópsia em 2, que não revelou deiscência na linha de sutura do fechamento da comunicação interventricular ou da suspensão da valva tricúspide.

Foi diagnosticado, ainda, pelo ecocardiograma, a presença de CIV residual em 1 paciente (do Grupo II), que se mostrou pequena e que, avaliada novamente 60 dias depois, estava fechada.

COMENTÁRIOS

O nosso interesse da revisão da nossa casuística foi avaliar os resultados imediatos da cirurgia da comunicação interventricular, especialmente nos seus aspectos técnicos, já que a CIV, isolada ou associada a outras lesões foi a cardiopatia congênita mais freqüente. Dentre os aspectos técnicos, um dos que nos chamou mais a atenção foi o da possibilidade da utilização da desinserção da valva tricúspide influenciar negativamente a evolução dos pacientes no aparecimento de insuficiência tricúspide ou bloqueio atrioventricular. Por outro lado, a não desinserção e a discutível má visão dos bordos da CIV poderiam aumentar o número de CIV's residuais. A literatura é pobre no assunto.

Nossos resultados mostraram que a desinserção da cúspide septal e parte do interior da valva tricúspide não causou diferença estatisticamente significante na incidência de insuficiência tricúspide pós-operatória (com Qui-quadrado menor que 0,1 para um nível de significância de 0,01 e grau de liberdade igual a 2), resultados que coincidem com os de PRIDJAIN et al. (5). Nossos 3 casos de IT moderada no pós-operatório foram justamente os que apresentaram baixo débito cardíaco, 2 dos quais com crises de hipertensão pulmonar e importante dilatação de câmaras direitas levando a concluir que a insuficiência tricúspide era secundária à dilatação das câmaras, e não relacionada com a técnica de desinserção, já que dos 3 casos, apenas em 1 havia sido realizada a desinserção. Para reforçar ainda mais a nossa hipótese de dilatação aguda do anel valvar, dos 3 pacientes que faleceram foi realizada necrópsia em 2 deles, que mostrou ausência de deiscência nas suturas da CIV ou da suspensão da valva.

Nossas conclusões foram muito similares às de TATEBE et al. (6), que tiveram 2 casos de insuficiência tricúspide pós-operatória moderada dentre 13 pacientes submetidos à operação de correção de comunicação interventricular isolada com o uso de desinserção. Os autores também correlacionaram a presença da incompetência valvar ao baixo peso dos pacientes com elevado grau de hipertensão pulmonar. Infelizmente, seu trabalho não é comparativo no que se refere ao uso da técnica. Em nossa casuística não pudemos relacionar qualquer fator independente de risco entre os dois grupos de pacientes.

Ainda gostaríamos de ressaltar que o tempo gasto para a realização da desinserção e posterior sutura não aumentou o tempo de parada cardíaca anóxica em relação ao grupo sem desinserção, provavelmente pela melhor exposição das bordas da CIV e maior rapidez no seu fechamento.

Não houve casos de CIV residual no Grupo II (com desinserção) mostrando que esta técnica não apresenta nenhuma desvantagem em relação ao Grupo I (sem desinserção) no que se refere à incidência de CIV residual pelo menos nesta série.

Houve apenas um caso de bloqueio atrioventricular total, que ocorreu no Grupo I, que foi transitório, sendo que se reverteu espontaneamente no primeiro dia de pós-operatório, sem necessidade do uso de marcapasso.

A mortalidade foi de 2 (10,5%) pacientes do Grupo I e de 1 (6,6%) paciente no Grupo II sem significância estatística na presente série de pacientes.

CONCLUSÕES

Em conclusão podemos afirmar que a técnica de desinserção e posterior sutura das cúspides da valva tricúspide apresenta-se como uma opção cirúrgica de grande utilidade para melhor visão das bordas da CIV e, como se propõe este trabalho, não houve diferença na incidência de insuficiência tricúspide pós-operatória não mostrando diferença também na incidência de CIV residual ou bloqueio atrioventricular no pós-operatório imediato.

Não conhecemos trabalho que avalie os resultados a médio e a longo prazo da utilização da técnica de desinserção, especialmente no que se refere à função de valva tricúspide. Pretendemos realizar estas avaliações para maior elucidação da função valvar, quais sejam, ausência de estenose ou insuficiência relacionadas à presença de uma linha de sutura na base das cúspides, com a evolução.

Apesar da pequena casuística, poderíamos (ou seja, através de uma avaliação imediata), recomendar esta técnica sempre que o cirurgião achar necessidade de melhor exposição das bordas da CIV, sem a preocupação de estar causando prejuízos para a função da valva tricúspide, ou aumentando o risco de distúrbios do sistema de condução ou promovendo a incidência de CIV residual no pós-operatório imediato.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1 Lillehei C W, Cohen M, Warden H E, Ziegler N R, Varco R L - The results of direct vision closure of ventricular septal defects in patients by means of controlled cross circulation. Surg Gynecol Obstet 1955; 101: 446.

2 Kirklin J & Barratt-Boyes B - Cardiac surgery. 2. ed, New York: Crurchill Livingstone, 1993: 804.

3 Soto B & Pacifico A - Angiocardiography in congenital heart malformations Mount Kisco, NY: Futura Publishing Company Inc., 1990: 329.

4 Freenckner B P, Olin C L, Bomfim V, Bjarke B, Wallgren C G, Björk V O - Detachment of the septal tricuspid leaflet during transatrial closure of isolated ventricular septal defect. J Thorac Cardiovasc Surg 1981; 82: 773-8.

5 Pridjian A K, Pearce B F, Culpepper W S, Williams L C, Ochsner J L - AV valve competence after takedown to improve exposure during VSD repair. In: 73rd. Annual Meeting of The American Association For Thoracic Surgery. Chicago, IL: The American Association For Thoracic Surgery, 1993:178. (Annals).

6 Tatebe S, Miyamura H, Watanabe H, Sugawara M, Eguchi S - Closure of isolated ventricular septal defect with detachment of the tricuspid valve. J Card Surg 1995; 5: 564-8.

Article receive on sexta-feira, 1 de maio de 1998

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