OBJETIVOS: As cardioplegias sangüíneas normotérmica e hipotérmica, administradas de maneira anterógrada e intermitente, têm demonstrado serem eficientes na proteção miocárdica em cirurgias de revascularização miocárdica. Entretanto, pouco se conhece da eficiência dessas técnicas em corações hipertróficos. Dessa maneira, foram estudados seus efeitos nos substratos intracelulares miocárdicos em pacientes portadores de estenose aórtica, submetidos a cirurgia de troca valvar aórtica.
CASUÍSTICA E MÉTODOS: A concentração intracelular miocárdica dos substratos (ATP, lactato, glutamato, aspartato e alanina) foi medida em biópsias de ventrículo esquerdo de 20 pacientes submetidos a troca valvar aórtica, usando, como método de proteção miocárdica, cardioplegia sangüínea normotérmica (n=10) ou hipotérmica (n=10), administradas de forma anterógrada e intermitente. As biópsias foram retiradas 5 minutos após o início da circulação extracorpórea (controle), 30 minutos após o pinçamento aórtico (isquemia) e 20 minutos após o despinçamento (reperfusão).
RESULTADOS: Não houve alterações significantes na concentração intracelular dos substratos nas amostras coletadas durante o período isquêmico, em comparação ao controle. Na reperfusão, entretanto, houve significante queda nos valores de ATP e aminoácidos em ambos os grupos, em relação ao grupo controle.
CONCLUSÃO: Os dados sugerem que ambos os protocolos de proteção miocárdica empregados não foram eficientes na proteção miocárdica de corações hipertróficos.
OBJECTIVE: Warm intermittent blood cardioplegia has been shown to prevent the reperfusion damage seen when cold blood cardioplegia is used in patients undergoing coronary revascularization. Little is known on the effects of these two cardioplegic techniques on hypertrophic hearts. The aim of this study was to investigate the comparative effects of cold and warm antegrade blood cardioplegia in patients with aortic stenosis who underwent aortic valve replacement.
MATERIAL AND METHODS: The intracellular concentration of substrates (ATP, lactate and amino acids) was measured in left ventricular biopsies taken from 20 patients undergoing aortic valve replacement in whom myocardial protection was achieved by hyperkalaemic intermittent warm (n=10) or cold (n=10) blood cardioplegia. Biopsies were taken 5 minutes after institution of cardiopulmonary bypass (control), after 30 minutes of ischaemic arrest and 20 minutes after reperfusion.
RESULTS: There were no significant changes in the intracellular concentration of substrates in the samples collected during the time of ischaemic arrest when compared to control. Upon reperfusion however there was a significant fall in the ATP and amino acids regardless of the cardioplegia technique used.
CONCLUSION: The data suggest that both cardioplegia techniques do not confer adequate myocardial protection in hypertrophic hearts.
INTRODUÇÃO
As técnicas e estratégias de proteção miocárdica em cirurgia cardíaca têm sido profundamente alteradas nas últimas décadas. Essa evolução com contínuo aprimoramento tem sido possível através de intenso trabalho baseado em estudos de metabolismo aeróbio e anaeróbio do coração, cuidadosa observação em laboratório e subseqüente aplicação clínica. Lesões miocárdicas decorrentes da inadequada proteção miocárdica podem resultar em aumento da morbidade e mortalidade operatória, internação hospitalar prolongada com aumento dos custos e ainda ocasionar fibrose miocárdica tardia.
Nas últimas décadas, a cardioplegia sangüínea tem evoluído para ser a técnica de proteção miocárdica de maior aceitação, preconizada e difundida após os estudos de BUCKBERG (1) e seu grupo na Universidade da Califórnia a partir de 1977. A cardioplegia sangüínea normotérmica foi desenvolvida como uma alternativa à hipotérmica, já que a hipotermia, sabidamente, pode conduzir a alterações no metabolismo celular (2). Embora os estudos com aplicação de diferentes técnicas de cardioplegia tenham evoluído rapidamente no miocárdio isquêmico, muitas dúvidas ainda permanecem em relação ao miocárdio hipertrófico, reconhecido como mais suscetível à isquemia do que corações normais (3,4).
Este estudo propõe avaliar, através de biópsias seriadas de ventrículo esquerdo, os efeitos das cardioplegias sangüíneas normotérmica e hipotérmica, administradas de maneira anterógrada e intermitente, nos substratos intracelulares miocárdicos de pacientes portadores de estenose aórtica, submetidos a cirurgia de troca valvar.
CASUÍSTICA E MÉTODOS
Pacientes
Vinte pacientes com estenose isolada de valva aórtica com gradiente transvalvar médio de 66 ± 10 mmHg e hipertrofia miocárdica, submetidos a troca de valva aórtica primária, foram aleatoriamente alocados para um dos dois grupos propostos de técnicas de proteção miocárdica. As características dos pacientes são mostradas na Tabela 1. A técnica anestésica utilizada foi padronizada para todos os pacientes, com uso de tiopentano 1-3 mg/kg para indução e fentanil 3-5 µg/kg associado a anestésicos inalatórios para manutenção. Propofol 3 mg/kg/h foi administrado durante a circulação extracorpórea e o bloqueio neuromuscular foi obtido com pancurônio 0,1-0,15 mg/kg. O sistema "alfa-stat" foi usado no controle ácido-básico em ambos os grupos. A anticoagulação inicial foi obtida com heparina na dose de 3 mg/kg de peso corpóreo e suplementada para manter o tempo de coagulação ativado acima de 480 segundos. A circulação extracorpórea (CEC) foi estabelecida usando oxigenador de membrana (Dideco, Mirandola, Itália), com canulação da aorta ascendente e uso de cânula única de duplo estágio no átrio direito. Todas as operações foram realizadas ou supervisionadas por apenas 2 cirurgiões (G. D. Angelini e W. J. Gomes), no Bristol Heart Institute da Universidade de Bristol, Inglaterra.
Técnica
No grupo hipotérmico (n=10) a temperatura sistêmica foi mantida em 28ºC e a proteção miocárdica foi obtida com uso de cardioplegia sangüínea hipotérmica (8-10º C) anterógrada intermitente onde o sangue foi misturado na proporção de 4:1 com solução cardioplégica St Thomas I (composição em mM/1 = NaCI, 147; MgCl2, 16; CaCl2, 16; KCl, 20; pH=7,40). Após o pinçamento da aorta, foram administrados, inicialmente, 1000 ml da solução cardioplégica diretamente nos óstios coronários (700 ml no esquerdo e 300 ml no direito). A seguir, a cada 20 minutos, a cardioplegia era administrada novamente por períodos de 2 minutos, na dose de 500 ml (300 ml no esquerdo e 200 ml no direito). No grupo normotérmico (n=10) a cardioplegia sangüínea normotérmica (35-37º C) foi formulada usando o sangue do paciente coletado do reservatório do oxigenador por meio de um tubo de 1/4 de polegada e administrada usando uma bomba de rolete acoplada a uma seringa de 50 ml que permitia a adição de potássio e magnésio, para dar uma concentração final de aproximadamente 20mM/l de potássio e 5 mM/l de magnésio. As doses obedeceram ao protocolo estabelecido na Tabela 2 e foram repetidas a cada 20 minutos de intervalo ou antes se houvesse retorno da atividade elétrica cardíaca. As soluções cardioplégicas foram administradas sob pressão nos óstios coronários, onde 2/3 foi direcionado para o óstio coronariano esquerdo e 1/3 para o direito. Os pacientes, neste grupo, foram continuamente aquecidos para temperaturas em torno de 37º C durante a CEC. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética do Instituto do Coração de Bristol (Bristol Heart Institute) da Universidade de Bristol e foi obtido consentimento escrito de todos os pacientes envolvidos.
Coleta de Biópsias Miocárdicas
Amostras de biópsia miocárdica (2,515 mg de peso) foram retiradas do ápice do ventrículo esquerdo usando uma agulha "Tru-cut" (Baxter Healthcare Corporation, IL, USA), sendo os locais de biópsias mantidos separados por pelo menos 3 mm de distância um do outro. A primeira biópsia foi feita 5 minutos após o início da circulação extracorpórea e serviu como controle, a segunda com 30 minutos do pinçamento aórtico e a terceira 20 minutos após a reperfusão. Cada amostra foi imediatamente congelada em nitrogênio líquido até o processamento, das análises, que foram feitas por um técnico que desconhecia o método de cardioplegia utilizado.
Determinação de Aminoácidos, ATP e Lactato
O processo usado para extração dos aminoácidos, ATP e lactato foi similar aos descritos anteriormente (5). Brevemente, as amostras congeladas foram maceradas e tratadas com ácido perclórico. Os extratos foram centrifugados a 1500 x g por 10 minutos a 4º C. O sobrenadante foi a seguir neutralizado e o precipitado foi pesado. O conteúdo de ATP foi medido pela técnica de luciferina bioluminescente (6). O lactato foi medido pelo método da Sigma Diagnostics (Sigma, Poole, UK).
Os aminoácidos contidos nos extratos de ambos os grupos foram determinados pelo método Waters PicoTag (7). Os dados adquiridos foram processados através de um programa Milennium 2000 fornecido pela Waters-Millipore (Watford, UK).
Determinação de Troponina I
A troponina I tem sido considerada um bom marcador de lesão miocárdica, já que é praticamente liberada pelas células miocárdicas lesadas. A coleta de amostras sangüíneas para determinação de troponina I foi feita antes da operação, na chegada do paciente na Unidade de Terapia Intensiva e após 4, 12, 24, 48 e 72 horas de pós-operatório. As análises foram feitas com uso de imunoensaio enzimático com conjunto de reagentes fornecidos pela Sanofi Diagnostics Pasteur (Guilford, Surrey, UK).
Análise dos Dados
Os dados foram expressos como valor médio ± erro padrão. As diferenças entre os períodos (controle, isquemia e reperfusão) em cada grupo foram avaliadas pela análise de variância e teste de Fischer protegido, disponível no software Statview para computadores Macintosh. Na análise dos dados da troponina I, os dois grupos foram comparados em cada período de coleta, com o uso do mesmo método estatístico. Fixouse em 0,05 ou 5% o nível para a rejeição da hipótese de nulidade, assinalandose com um asterisco os valores significantes.
RESULTADOS
Não houve diferenças entre os dois grupos de pacientes em relação às características pré ou intra-operatórias (Tabela 1). No período pós-operatório não foram observadas complicações em ambos os grupos, com os pacientes hemodinamicamente estáveis e sem necessidade de suporte inotrópico. Nenhum paciente mostrou sinais de infarto miocárdico intra-operatório.
Alteração da Concentração dos Aminoácidos Miocárdicos Durante a Isquemia e Reperfusão
As amostras colhidas após 30 minutos de isquemia mostraram uma queda na concentração de glutamato nos dois grupos, quando comparadas ao controle, embora não alcançando significância estatística. Entretanto, após 20 minutos de reperfusão houve outra queda em relação ao controle, que foi importante e agora estatisticamente significante nos dois grupos (Gráfico 1).
A concentração intracelular de aspartato também apresentou queda nos dois grupos, tanto na fase de isquemia como na de reperfusão, em relação ao controle, porém sem alcançar significância estatística (Gráfico 2).
Quanto à alanina, as concentrações intracelulares no grupo normotérmico foram elevadas nos períodos de isquemia e reperfusão e alcançaram significância estatística em relação ao controle. No grupo hipotérmico a elevação foi menor nos dois períodos e sem alcançar valores de significância estatística em relação ao controle (Gráfico 3).
Alteração da Concentração de ATP e Lactato Miocárdicos Durante a Isquernia e após Reperfusão
Após a parada isquêmica, em ambos os grupos, não houve alteração significante da concentração miocárdica de ATP em relação ao controle. Entretanto, na fase de reperfusão, o grupo hipotérmico apresentou queda acentuada e de significante correlação estatística quando comparado ao controle e ao período de isquemia. O grupo normotérmico também apresentou diminuição da concentração de ATP no período de reperfusão, estatisticamente significante, em relação ao controle (Gráfico 4).
A concentração do lactato não apresentou variação importante no grupo hipotérmico. Entretanto, houve um aumento da concentração de lactato nos períodos de isquemia e reperfusão no grupo da cardioplegia normotérmica, sem significância estatística. Esse aumento do lactato, visto no grupo normotérmico, foi parcialmente revertido após a reperfusão (Gráfico 5).
Alteração na Troponina I
Ambos os grupos mostraram um acentuado aumento da concentração sangüínea de troponina I. No grupo hipotérmico, o pico de concentração máxima foi alcançado com 12 horas, enquanto no normotérmico ocorreu com 4 horas. Houve importante declínio após 24 horas mas permanecendo ainda valores elevados mesmo após 72 horas. Não houve diferenças estatisticamente significantes entre os dois grupos (Gráfico 6).
COMENTÁRIOS
Segundo nosso conhecimento, este é o primeiro trabalho que documentou os níveis de aminoácidos, ATP e lactato diretamente no músculo de corações hipertróficos de pacientes com estenose de valva aórtica submetidos a cirurgia de troca valvar. Demonstrou que, apesar dos bons resultados clínicos colhidos, houve importantes alterações no metabolismo cardíaco, principalmente na fase de reperfusão, com o uso dos dois métodos propostos.
Após 30 minutos de isquemia miocárdica com o uso dos dois métodos de cardioplegia sangüínea, não houve alterações significantes no metabolismo energético miocárdico, medido pelos níveis de ATP, lactato, glutamato e aspartato. A cardioplegia sangüínea normotérmica foi associada a importante aumento de lactato tecidual, o que é indicativo de isquemia e metabolismo anaeróbio. Evidência adicional de metabolismo anaeróbio pode ser encontrada na queda da concentração de glutamato e no aumento da concentração de alanina (8). Durante o metabolismo anaeróbio, o miocárdio utiliza glutamato na reação de transaminação do piruvato para formar alanina e alfacetoglutarato. O alfacetoglutarato pode entrar no ciclo dos ácidos tricarboxílicos resultando na produção de ATP (9).
Após 20 minutos de reperfusão, as alterações nos metabólitos miocárdicos no grupo normotérmico foram acentuadas, com queda significante nos níveis de ATP. Houve uma modesta reversão do aumento na concentração de lactato, que tinha sido induzido pela isquemia, que é consistente com a sua remoção promovida pela reperfusão. Além disso, há uma queda na concentração de aspartato, que tem um importante papel metabólico nas células miocárdicas como substrato para produção de energia. O aspartato pode ser transaminado na presença de alfacetoglutarato e formar glutamato e oxalacetato. O oxalacetato entra no ciclo de Krebs e é reduzido a malato, com produção de ATP (10). A queda do ATP na reperfusão é, provavelmente, devido à retomada da atividade mecânica e à tentativa, pelo coração, de restabelecer a homeostasia iônica.
A melhor preservação de substratos durante a isquemia no grupo hipotérmico poderia sugerir grau adequado de proteção miocárdica. Entretanto, esta aparente proteção é perdida na reperfusão onde houve uma importante queda na concentração de ATP e glutamato, com valores similares àqueles observados no grupo normotérmico.
As importantes alterações nos substratos observadas na reperfusão, similares em ambos os grupos, refletem semelhante grau de lesão. Isto é confirmado pela proporcional elevação da concentração sangüínea de troponina I em ambos os grupos. SULEIMAN et al. (5) mostraram que as alterações nos metabólitos em biópsias miocárdicas retiradas de corações de pacientes submetidos a cirurgia de revascularização miocárdica usando cardioplegia sangüínea hipotérmica foram semelhantes àquelas encontradas no presente estudo, isto é, com queda nos níveis de ATP e acúmulo de lactato. Entretanto, essas alterações puderam ser evitadas com uso de cardioplegia sangüínea normotérmica no miocárdio isquêmico (11), o que não ocorreu com o miocárdio hipertrófico, neste trabalho. Isto sugere que corações hipertróficos são mais sensíveis à isquemia e reperfusão com o uso de cardioplegia sangüínea normotérmica anterógrada intermitente.
Os níveis de troponina I no sangue estiveram elevados em ambos os grupos. A troponina I, assim como a T, são excelentes marcadores bioquímicos para o diagnóstico de dano miocárdico, devido à sua especificidade e sensibilidade, mesmo na presença de lesão muscular esquelética (12). A troponina I está presente somente no miocárdio e é mais específica que a troponina T na detecção de lesão miocárdica (13). Também não sofre modificação em pacientes com função renal alterada (14).
Grandes estudos comparativos realizados revelaram a menor incidência de morbidade e menor custo hospitalar em pacientes submetidos a cirurgia de revascularização miocárdica com uso de cardioplegia sangüínea (15,16). Inúmeros estudos clínicos comparativos entre cardioplegia cristalóide e sangüínea ora mostraram superioridade da sangüínea, ora revelaram não haver diferenças entre esses dois métodos. Entretanto, quando esses estudos comparativos aprofundaram a busca a nível bioquímico e metabólico, poucas dúvidas restaram a respeito da superioridade de proteção miocárdica conferida pela cardioplegia sangüínea (17).
A cardioplegia sangüínea normotérmica foi desenvolvida pelo grupo de Toronto (18,19), como alternativa à hipotérmica, que sabidamente pode conduzir a alterações no metabolismo celular (20). A técnica normotérmica poderia proporcionar melhor manutenção da homeostasia, visto que o metabolismo celular seria melhor preservado em temperaturas ao redor de 37º C. Além disso, evitaria os efeitos deletérios associados ao uso da hipotermia.
Embora os estudos com aplicação de diferentes técnicas de cardioplegia tenham evoluído rapidamente no miocárdio isquêmico, muitas dúvidas ainda permanecem em relação ao miocárdio hipertrófico, mais suscetível à isquemia do que corações normais (3,4). O fluxo sangüíneo coronariano por unidade de massa de tecido apresentase reduzido e a hipertrofia da massa ventricular esquerda induz aumento do metabolismo. A maior espessura miocárdica da parede ventricular esquerda como também a elevação da pressão diastólica final limitam o fluxo coronariano subendocárdico, contribuindo para a inadequada distribuição da cardioplegia (21). Também diferenças metabólicas importantes entre o miocárdio isquêmico e hipertrófico têm sido recentemente estabelecidas (22). ORSINELLI et al. (21), em 1993, demonstraram que, quando associada a hipertrofia ventricular esquerda, a troca valvar aórtica apresenta mortalidade e morbidade aumentadas.
Seguindo a introdução e demonstração da adequada e segura proteção miocárdica conferida pela cardioplegia sangüínea normotérmica em corações isquêmicos (23,24), essa técnica foi extrapolada para uso em pacientes com hipertrofia ventricular esquerda.
Na tentativa de simplificação da técnica de cardioplegia normotérmica, estudos experimentais (25) e metabólicos (26) mostraram a eficiência da administração de forma anterógrada e intermitente.
Embora a proteção miocárdica conferida pela cardioplegia sangüínea normotérmica, administrada de maneira tanto anterógrada como retrógrada, demonstrasse ser eficiente na prática clínica, a administração contínua dessa solução dificultava a visualização do campo operatório e precisava ser interrompida temporariamente. Estudos subseqüentes em operações de revascularização miocárdica mostraram que interrupções de até 15 a 20 minutos não causavam aumento de morbidade e que, portanto, constituía-se num método prático e seguro (27,28).
Por outro lado, a extrapolação da técnica normotérmica para corações hipertróficos merece algumas considerações. Pacientes com estenose aórtica freqüentemente apresentam evidências metabólicas de isquemia miocárdica durante testes de esforço (29). A isquemia em corações hipertróficos pode ocorrer por mecanismos agindo separadamente ou em associação. Primeiro, a isquemia pode resultar da menor densidade e menor resposta vasodilatadora dos capilares miocárdicos. Isto limita a capacidade de aumento do fluxo sangüíneo coronariano para equilibrar a demanda metabólica do miocárdio que está aumentada (30). Segundo, a isquemia pode resultar da alteração entre o suprimento e a demanda aumentada de oxigênio pelo miocárdio hipertrofiado por causa das conseqüências hemodinâmicas da estenose aórtica (31). Também a relação de fluxo sangüíneo entre endocárdio e epicárdio é menor do que em corações normais (32).
Buscando melhorar tecnicamente a cirurgia da troca valvar aórtica, onde períodos de interrupção da cardioplegia sangüínea facilitam a operação, CALAFIORE et al. (33), em 1996, propuseram e avaliaram a utilização da cardioplegia sangüínea normotérmica intermitente anterógrada. Compararam dois grupos de pacientes submetidos a troca valvar aórtica utilizando soluções normotérmica e hipotérmica administradas de maneira intermitente e anterógrada e concluíram que no grupo normotérmico os pacientes tiveram menor mortalidade e morbidade, com melhor preservação do metabolismo miocárdico e menor geração de radicais livres de oxigênio.
Entretanto, apesar dos bons resultados clínicos obtidos neste trabalho e também por CALAFIORE et al. (1996) (33), a avaliação do metabolismo miocárdico neste protocolo forneceu evidência direta que as cardioplegias sangüíneas hipotérmica e normotérmica administradas anterogradamente e de maneira intermitente propiciaram inadequada proteção em corações hipertróficos de pacientes submetidos a cirurgia de troca valvar aórtica. Também demonstrou a necessidade de cautela em adotar ou extrapolar técnicas desenvolvidas e testadas em corações com doença isquêmica para outras situações. Os períodos mais longos de isquemia, quando comparados aos corações submetidos a revascularização miocárdica, podem ser os responsáveis pela diferença de resultados. Mudanças na dose da cardioplegia também poderiam proporcionar melhora do resultado. Estudos adicionais serão necessários para melhorar e aperfeiçoar estas técnicas em busca de uma proteção miocárdica adequada em corações hipertróficos. Também técnicas alternativas de cardioplegia contínua, com uma combinação de administração anterógrada e/ou retrógrada, que poderiam proporcionar melhor proteção, precisariam ser avaliadas com esta metodologia.
CONCLUSÃO
Concluindo, este trabalho forneceu evidência direta de que tanto a cardioplegia sangüínea hipotérmica como a normotérmica, usadas neste protocolo, administradas anterogradamente e de maneira intermitente, propiciaram inadequada proteção em corações hipertróficos de pacientes portadores de estenose aórtica submetidos a cirurgia de troca valvar.
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