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TRABALHO EXPERIMENTAL

Estudo experimental com heteroenxertos valvares descelularizados - a prótese do futuro

Francisco Diniz Affonso da Costa; Pascal Dohmen; Sérgio Veiga Lopes; Felipe Pohl; Ricardo Vilani; Eduardo Discher Vieira; Marise Brenner Affonso Da Costa; Sérgio Yoschi Wolfgang Konertz

DOI: 10.1590/S0102-76382004000100013

INTRODUÇÃO

Homoenxertos valvares criopreservados vêm sendo utilizados na correção de diversas valvopatias e cardiopatias congênitas complexas com resultados funcionais bastante satisfatórios. Em decorrência de seu desempenho hemodinâmico fisiológico, da incidência praticamente nula de tromboembolismo e da alta resistência a infecções, é considerado o enxerto de escolha em diversas situações clínicas [1].

Embora sua durabilidade seja superior a de outros substitutos valvares biológicos, os homoenxertos também estão sujeitos à degeneração progressiva, especialmente em crianças e adultos jovens. Por esse motivo, diversos autores recomendam a operação de Ross para a substituição da valva aórtica em pacientes dessa faixa etária [2].

Os mecanismos de calcificação e degeneração em substitutos valvares biológicos são complexos, multifatoriais e ainda não completamente compreendidos. Dentre eles, a controversa "ação deletéria" do glutaraldeído, a presença de restos celulares que podem servir como foco inicial de calcificação e a menor flexibilidade das fibras colágenas induzida pelas ligações cruzadas, criam condições que facilitariam o processo de calcificação [3]. Além disso, a antigenicidade do tecido induz a ativação e aderência de macrófagos, os quais, quando estimulados, podem adquirir um fenótipo de osteoblasto (depositores de cálcio) [4,5].

O implante de homoenxertos valvares desencadeia resposta imunológica no hospedeiro, com ativação de linfócitos T e produção de anticorpos do sistema HLA contra antígenos de histocompatibilidade do tipo I e II, os quais estão localizados fundamentalmente nos fibroblastos e nas células endoteliais desses enxertos [6-8]. Embora WELTERS et al. [9] tenham sugerido que a intensidade dessa reação aumenta a probabilidade de disfunção do enxerto, a correlação entre a resposta imunológica e os resultados tardios não pode ser demonstrada nos diversos estudos da literatura. Curiosamente, os melhores resultados tardios foram obtidos com homoenxertos homovitais e criopreservados, justamente aqueles com maior potencial imunológico [1,2].

Pesquisas mais recentes visam, por meio da engenharia de tecidos, desenvolver valvas que incorporem células autólogas capazes de fazer o reparo e remodelamento da matriz extracelular, apresentando, dessa forma, capacidade regenerativa e de crescimento, com potencial para maior durabilidade [10-18].

O Laboratório de Engenharia de Tecidos da PUC-PR, em parceria com a Universidade Humboldt de Berlim, desenvolveu metodologia capaz de descelularizar homo e heteroenxertos valvares, mantendo a matriz colágena extracelular intacta. Enxertos assim tratados seriam inertes e capazes de serem repovoados por células autógenas após o seu implante [10].

O objetivo desse trabalho foi de avaliar, comparativamente, o comportamento funcional de homoenxertos criopreservados e heteroenxertos valvares descelularizados, implantados na via de saída do ventrículo direito de carneiros jovens. Adicionalmente, relatar a experiência clínica inicial com o emprego de homoenxertos valvares descelularizados em pacientes submetidos à operação de Ross.

MÉTODO

Preparo dos Homoenxertos Criopreservados

Homoenxertos pulmonares ovinos foram obtidos de carneiros jovens da raça Suffolk com idades variando entre 4 a 6 meses.

Após esterilização em solução nutriente com antibióticos (Solução de RPMI com Frademicina 120µg/ml, Cefoxitina 240µg/ml, Vancomicina 50µg/ml e Polimixina B 100µg/ml) por 48h, foram congelados a -1ºC /min em freezer computadorizado marca Planer Cryoseries III e depois estocados na fase de vapor de nitrogênio líquido a -150ºC até a data do implante.

Preparo dos Heteroenxertos Porcinos Decelularizados

Heteroenxertos pulmonares porcinos foram esterilizados em solução nutriente com antibióticos (Solução de RPMI com Penicilina 100U/ml, Estreptomicina 100mg/ml e Anfotericina B 250ng/ml) por pelo menos sete dias. Em seguida, foram submetidos a decelularização através de método patenteado pela Universidade Humboldt de Berlim, que inclui o uso de ácido deoxicólico e etanol. Foram então mantidos em solução fisiológica salina até o momento do implante [12,16].

Técnica Operatória

Em todos os animais foram obedecidos os critérios de cuidados animais elaborados pelo Comitê de Ética de Pesquisas da PUC-PR.

Foram operados oito animais com idade variando de 3 a 6 meses e peso de 25 a 40kg. Em quatro animais foram implantados homoenxertos criopreservados (Grupo A) e nos outros quatro, heteroenxertos descelularizados (Grupo B).

Os animais ficaram em jejum por 48 a 72 horas antes da operação, sendo pré-medicados com Diazepan 0,5 mg/kg e Butorfanol 0,4 mg/kg. A anestesia foi induzida com Ketamina 5 mg/kg e Halotano 3,5% por máscara e mantida com Halotano 1,5% e Propofol 0,8 mg/kg, sendo ventilados em respirador Oxigel 1700 para manter o pCO2 entre 35 - 45 mmHg. Durante a operação, foi realizado controle do traçado eletrocardiográfico, de pressão arterial invasiva, da oximetria de pulso e capnografia, além de análise gasométrica seriada.

As operações foram feitas com toracotomia lateral esquerda no 3º ou 4º espaço intercostal, sendo o pericárdio aberto verticalmente para exposição do coração. Após anticoagulação sistêmica com heparina 250U/kg, foi iniciada a circulação extracorpórea com canulação da aorta torácica descendente e canulação venosa única no átrio direito. Foram utilizados oxigenadores de membrana pediátricos Braile Biomédica, com fluxo sistêmico de 2,5 l/min/m2 de superfície corpórea, em normotermia.

O tronco da artéria pulmonar foi dissecado e liberado das estruturas vizinhas, sendo seccionado transversalmente logo acima do plano valvar. A valva pulmonar nativa foi ressecada totalmente e, em seguida, implantados os enxertos com suturas contínuas de polipropileno 4-0 proximal e distalmente.

Após o término das anastomoses, foi descontinuada a CEC, não se revertendo a heparina. Feita a revisão da hemostasia, o tórax foi fechado por planos, mantendo-se um dreno torácico na cavidade pleural sob aspiração contínua até o momento da extubação do animal.

A profilaxia antibiótica foi feita com Ceftiofur 3mg/kg e Gentamicina 3mg/kg endovenosa, iniciando-se 6 horas antes da operação até o 5º dia de pós-operatório. Os animais foram mantidos em observação na Fazenda Experimental da PUC-Pr até o momento do abate e explante do enxerto.

Em cada grupo, dois animais foram sacrificados com 90 dias de evolução e os outros dois com 150 dias.

Controle Ecocardiográfico

Todos os animais foram submetidos a controle ecocardiográfico aos 30 e 90 dias de pós-operatório, e aqueles sacrificados aos 150 dias realizaram mais um controle antes do sacrifício.

Os exames foram realizados em aparelho de ultrassonografia Hewllett-Packard Sonos 5500, procurando-se visualizar os enxertos pulmonares em diversas projeções, determinando-se a função hemodinâmica dos enxertos pela medida dos gradientes transvalvares e quantificando-se a insuficiência quando existente. Foram também observadas a consistência e a espessura das cúspides e da parede dos enxertos, procurando-se sinais de calcificação.

Análise Macroscópica

Para o explante, os animais foram anestesiados de acordo com a técnica já descrita, sacrificados com injeção endovenosa de KCl 19,1% e exsangüinados. Após toracotomia esquerda no 3º espaço intercostal e dissecção das aderências pericárdicas, os enxertos foram avaliados macroscopicamente e obtida documentação fotográfica com câmera digital modelo Sony Ciber Shot 32. Especial atenção foi prestada para a presença de cálcio na parede e/ou cúspide valvar, retração das cúspides, fenestrações e presença de trombos ou vegetações.

Análise Radiológica

Os enxertos foram avaliados radiologicamente em mamógrafo tipo Mammomat C3 da Siemens, para a detecção e análise da presença e distribuição da calcificação.

Estudos Histológicos

Para a análise microscópica, um segmento da parede arterial do enxerto contendo uma das cúspides foi fixado em formaldeído 10%, sendo em seguida preparados os blocos de parafina e realizados os cortes de 4µm de acordo com as técnicas convencionais. Foram então corados com Hematoxilina-Eosina, Tricrômico de Gomori, e Sirius-Red para a análise de fibras colágenas sob luz polarizada.

Medição do Cálcio

Para a medição do cálcio foram separados segmentos da parede do conduto e uma das cúspides valvares, os quais foram digeridos com ácido nítrico 25% por 4 horas a 70ºC e depois imersos em solução de ácido clorídrico 0,2N. A medição do cálcio foi feita em espectrofotômetro de absorção atômica Perkin Elmer 4100 com comprimento de onda de 422,7 nm.

Experiência Clínica Inicial

De 16/1/2003 a 19/3/2003, quatro pacientes submetidos à operação de Ross tiveram a via de saída do ventrículo direito reconstruída com homoenxertos valvares descelularizados. Dois pacientes eram do sexo masculino e dois do feminino, com idades de 12 a 30 anos. O diagnóstico foi de estenose aórtica em dois casos e insuficiência nos outros dois. Em duas ocasiões a etiologia foi reumática e nas outras duas foi congênita. As operações foram realizadas com técnicas previamente descritas.

Análise Estatística

Os resultados referentes à medição de cálcio foram comparados empregando-se o teste t de Student, sendo considerados significativos quando o valor de p foi menor do que 0,05.

RESULTADOS

Por controle histológico pôde-se constatar que os homoenxertos valvares criopreservados mantiveram sua estrutura trilaminar intacta com celularidade preservada, inclusive da camada endotelial. Já as cúspides dos heteroenxertos valvares descelularizados ficaram com ausência completa dos elementos celulares, mas com adequada preservação da sua matriz extracelular (Figura 1).



Todos os carneiros sobreviveram à operação e não houve mortalidade tardia.

Por ocasião dos explantes, pudemos constatar que as aderências pericárdicas em torno dos heteroenxertos descelularizados eram menos intensas do que nos homoenxertos criopreservados. O aspecto macroscópico externo dos condutos foi basicamente semelhante nos dois grupos, não havendo áreas de calcificação significativa. Subjetivamente, entretanto, os condutos dos heteroenxertos descelularizados tinham consistência normal, em contraste com os condutos dos homoenxertos criopreservados que pareciam mais endurecidos. As cúspides valvares estavam finas e translúcidas, sem nenhum sinal de espessamento, retração e/ou calcificação, com aspecto macroscópico normal nos dois grupos, à exceção de um homoenxerto criopreservado com 150 dias de evolução que apresentava calcificação visível na região comissural.

Da mesma forma, os exames ecocardiográficos demonstraram ausência de gradientes transvalvares significativos em todos os exames realizados, sem o aparecimento de insuficiência valvar em ambos os grupos. Não foram detectados sinais de espessamento e/ou calcificação nos exames realizados.

Ao estudo radiológico, entretanto, foi possível detectar áreas de calcificação nas linhas de sutura proximal e distal, em ambos os grupos. Pequenos focos de calcificação puderam ser detectados em dois homoenxertos valvares criopreservados, mas nunca nos heteroenxertos descelularizados (Figura 2).



Esse processo inicial de calcificação pode também ser demonstrado pela quantificação de cálcio, conforme descrito nas Tabelas 1 e 2.





Embora o número da amostra seja bastante reduzido para uma análise estatística conclusiva, o valor de p pelo teste de Student foi de 0,02, o que sugere menor tendência de calcificação das cúspides valvares no grupo dos heteroenxertos decelularizados.

Já para as paredes dos condutos, não se observou nenhuma diferença significativa entre os grupos, sendo o valor de p igual a 0,38.

O estudo histológico demonstrou que os homoenxertos criopreservados sofreram perda gradativa das células fibroblásticas, transformando-se em uma matriz acelular. Em algumas ocasiões pudemos encontrar sinais de degeneração mucóide dessa matriz. Curiosamente, a camada endotelial sempre se manteve preservada, mesmo em enxertos com cinco meses de evolução.

A Figura 3 ilustra alguns aspectos histológicos encontrados em homoenxertos criopreservados.



Em contraste, heteroenxertos descelularizados apresentaram uma reação linfoplasmocitária inicial, seguida de repopulação gradativa da matriz acelular. Células fibroblásticas migraram da base da cúspide em direção às porções mais distais, de forma que após 5 meses, pelo menos 50% da superfície das cúspides estavam repovoadas tanto por fibroblastos como por células endoteliais. Prolongamentos eosinofílicos saindo das caudas de fibroblastos foram muito sugestivos de que essas células são funcionais na produção de pró-colágeno. Diferentemente dos homoenxertos criopreservados, a matriz extracelular manteve seu aspecto trilaminar habitual. Em algumas ocasiões, pôde-se visualizar ilhas de fibroblastos e células endoteliais nas porções mais distais das cúspides, o que sugere um repovoamento celular a partir da corrente sangüínea. Os aspectos histológicos dos heteroenxertos descelularizados estão ilustrados na Figura 4.



Os quatro pacientes operados tiveram evolução clínica satisfatória. Um deles teve que ser reoperado por hemorragia no pós-operatório imediato, por sangramento na linha de sutura distal do homoenxerto pulmonar, tendo o restante da evolução sido normal. Os ecocardiogramas de controle antes da alta hospitalar demonstraram função hemodinâmica normal dos homoenxertos implantados, com gradientes de pico sempre abaixo de 10mmHg e sem insuficiência valvar.

COMENTÁRIOS

É imperativo que o uso clínico de qualquer novo tipo de substituto valvar seja precedido de extensa avaliação experimental in vitro e in vivo. Dentre os diversos modelos animais, é bem estabelecido que o implante de próteses em carneiros jovens fornece importantes informações não somente sobre o seu desempenho hemodinâmico, mas também sobre o comportamento biológico de diferentes tecidos quando na circulação sangüínea. Na via de saída do ventrículo direito de carneiros jovens, as próteses biológicas tendem a degenerar e calcificar rapidamente, permitindo fazer inferências sobre eventuais resultados clínicos em humanos [19-22].

Os dados aqui apresentados fazem parte do protocolo de desenvolvimento de nova metodologia de preparo de homoenxertos valvares, que consiste na redução da antigenicidade tecidual pela eliminação das células endoteliais e fibroblásticas das cúspides e da parede arterial do conduto [10].

Homoenxertos valvares são utilizados para a correção de diversas cardiopatias há mais de 40 anos. Nesse tempo, diversos métodos de preservação e estocagem foram utilizados, incluindo o uso de soluções nutrientes com antibióticos, liofilização, ß-irradiação, óxido de etileno, congelamento seco, criopreservação e até o emprego de homoenxertos ditos homovitais. Apesar das últimas duas técnicas terem apresentado os melhores resultados, as alterações degenerativas tardias ainda são responsáveis pela durabilidade limitada desses enxertos, especialmente em crianças e adultos jovens [1,2].

Embora homoenxertos criopreservados e homovitais apresentem graus variados de viabilidade de células endoteliais e de fibroblastos antes do implante, a análise de enxertos explantados de seres humanos demonstrou que tanto as cúspides valvares como as paredes dos condutos se transformaram, num prazo de algumas semanas ou meses, em matrizes colágenas acelulares. Dessa forma, não possuem capacidade regenerativa, ficando sujeitas à degeneração progressiva [23].

Do ponto de vista hemodinâmico, os dois grupos aqui estudados tiveram comportamentos semelhantes, com gradientes sempre menores que 12mmHg e sem insuficiência valvar nos períodos de observação. Esses dados confirmam a excelente estabilidade do colágeno maduro não fixado e justificam porque os homoenxertos criopreservados convencionais ainda são considerados o "padrão-ouro" dos substitutos valvares [1,2,11,13].

Ao contrário dos heteroenxertos fixados em glutaraldeído, que calcificam rapidamente em carneiros jovens, os enxertos aqui estudados não demonstraram calcificação significativa até 150 dias de observação, o que está de acordo com os estudos de JONAS et al. [24].

No presente estudo, pudemos observar que tanto as cúspides valvares como as paredes dos condutos dos homoenxertos criopreservados apresentaram perda gradativa de sua celularidade e início de degeneração mucóide da matriz extracelular. Em alguns casos, entretanto, algumas ilhas de fibroblastos ainda estavam presentes, mesmo nos explantes mais tardios. Ao contrário do ocorre em seres humanos, pudemos constatar a presença multifocal da camada de células endoteliais, mesmo em explantes com cinco meses de evolução. Se esse endotélio tem origem nas células do doador ou se foi uma reendotelização pelo receptor, não pode ser respondido neste estudo. Esses dados confirmam os achados de JONAS et al. [24], que observaram camada endotelial íntegra e ausência completa de fibroblastos em homoenxertos frescos e criopreservados implantados em carneiros por períodos de até nove meses de evolução.

O mecanismo fisiopatológico da morte celular nos homoenxertos ainda não é completamente compreendido. RAMOS et al. [25] fizeram análise histológica comparativa dos explantes de homoenxertos aórticos com o de valvas aórticas de corações transplantados, e demonstraram que todos os homoenxertos estavam acelulares e hialinizados, enquanto que as valvas dos corações transplantados mantiveram sua estrutura histológica praticamente intacta, com presença de endotélio de forma multifocal e apresentando apenas discreta diminuição dos fibroblastos perto das margens livres das cúspides. O estudo do perfil genético das células demonstrou que os fibroblastos presentes tinham origem tanto do doador como do receptor. Esses achados sugerem, pelo menos em parte, que a destruição celular nos homoenxertos foi causada por reação imunológica, e que o tratamento imunossupressor nos corações transplantados foi efetivo na preservação dessas células. Entretanto, a possibilidade de que os procedimentos empregados no preparo dos homoenxertos tenham alterado a matriz extracelular das cúspides de forma que as mesmas tivessem perdido as condições adequadas para a adesão e proliferação celular não pode ser excluída.

Embora acredite-se que a nutrição das cúspides valvares se faça por embebição, WEIND et al. [26] demonstraram que as cúspides valvares possuem irrigação sangüínea própria. Assim sendo, a eventual isquemia tecidual nos homoenxertos valvares pode estar implicada na perda de viabilidade celular.

Outra hipótese sugere que os efeitos deletérios dos diversos métodos de preservação e estocagem possam induzir a alterações teciduais que culminariam com a morte celular. Esse mecanismo não pode ser comprovado, visto que RAMOS et al. [25] demonstraram que, ao contrário dos homoenxertos, auto-enxertos aórticos criopreservados mantiveram sua viabilidade celular praticamente íntegra após o implante, sendo a hiperplasia intimal a única alteração histológica detectável.

Mais recentemente, a engenharia de tecidos tem se mostrado promissora para o desenvolvimento de variados tipos de enxertos. Especificamente no campo das próteses valvares cardíacas, procura-se obter uma matriz que possa ser repopulada in vitro ou in vivo por células autógenas, o que resultaria numa prótese valvar com capacidade regenerativa e de crescimento, sendo, portanto, um enxerto mais fisiológico e durável[13].

Embora muitos pesquisadores concentrem sua atenção para o desenvolvimento de uma matriz totalmente sintética e biodegradável, o emprego de matrizes naturais como as valvas porcinas ou os homoenxertos nos parece mais apropriado, visto se tratar de uma matriz "natural". Diversos tratamentos químicos capazes de decelularizar as cúspides valvares e as paredes arteriais dos condutos têm sido propostos, incluindo o uso de detergentes, soluções hipo e hipertônicas, enzimas como a RNAse e DNAse, etanol e o ácido deoxicólico [11-18].

ELKINS et al. [11,13] demonstraram que heteroenxertos porcinos decelularizados, quando implantados em carneiros jovens, tiveram desempenho hemodinâmico normal por períodos de até 11 meses de evolução, não se observando calcificação nem retração tecidual. A análise histológica seqüencial dos enxertos demonstrou que logo após o implante observou-se uma reação inflamatória evidenciada pela invasão tecidual fundamentalmente por macrófagos e granulócitos, sendo pequeno o número de linfócitos. Subseqüentemente, a matriz foi invadida por células intersticiais do tipo fibroblastos e miofibroblastos, os quais migraram da base da cúspide em direção à margem livre. Após um ano de evolução, aproximadamente 80% da cúspide foi repovoada e, por estudo imunohistoquímico, pode-se observar a produção de pró-colágeno do tipo I, sugerindo a funcionalidade dessas células. Curiosamente, não foi observada reendotelização dos enxertos.

DOHMEN et al. [12,15] estudaram heteroenxertos pulmonares porcinos decelularizados e reendotelizados in vitro, aos quais chamaram de autoxenoenxertos pulmonares. Quando implantados em carneiros jovens, esses enxertos também demonstraram desempenho hemodinâmico normal, sem calcificação e sem crescimento de pannus dentro do conduto. Da mesma forma, foi observado o repovoamento parcial das cúspides valvares por fibroblastos, além da presença de camada endotelial íntegra cobrindo ambas as superfícies das cúspides. Em virtude disso, os autores recomendam a endotelização in vitro antes do implante para assegurar uma repopulação mais fisiológica dos enxertos.

No presente estudo, utilizamos a metodologia de descelularização proposta por DOHMEN et al. [10], entretanto, sem fazer a endotelização in vitro. Da mesma forma que os estudos anteriormente citados, pudemos observar o repovoamento gradativo das cúspides valvares, que se iniciava na base das cúspides em direção a sua margem livre. Essas células parecem ser oriundas do miocárdio subjacente ou de vasos neoformados na região do implante. Além disso, em dois enxertos pudemos observar ilhas de novos fibroblastos perto da margem livre das cúspides, indicando que células sangüíneas possam colaborar no repovoamento celular. Aos 150 dias de evolução, aproximadamente 50% da superfície estava invadida por fibroblastos, semelhante ao observado por ELKINS et al. [11,13]. Ao contrário desses autores, entretanto, pudemos observar que nossos enxertos também foram parcialmente reendotelizados, especialmente nos enxertos de maior tempo de seguimento. Talvez a metodologia de decelularização possa explicar essa diferença.

Em pesquisas já iniciadas em nossos laboratórios, questionamos sobre a necessidade, vantagens e factibilidade de se endotelizar in vitro os enxertos antes do implante. Do ponto de vista funcional, a existência de uma camada endotelial íntegra e completa desde o início seria bastante desejável. Adicionalmente, sabe-se que células endoteliais têm a capacidade de migrar para o interior da matriz e se transformar em células intersticiais fibroblásticas, o que facilitaria o repovoamento do enxerto. Por outro lado, a semeadura in vitro das células endoteliais é um processo bem mais complexo e oneroso, com implicações óbvias na rotina diária [10,12,16].

Embora não tenhamos feito estudos imunohistoquímicos, as imagens histológicas sugerem a produção de colágeno próximo aos fibroblastos. Além disso, diferentemente dos homoenxertos criopreservados, a matriz colágena nos pareceu mais intacta, sem sinais de degeneração mucóide.

Ainda em sua fase inicial, a experiência clínica com enxertos decelularizados tem sido satisfatória. ELKINS et al. [27] reportaram, recentemente, experiência multiinstitucional com mais de 1000 casos de homo e heteroenxertos decelularizados, tanto em posição aórtica como pulmonar, já no 4º ano de evolução. Por sua vez, DOHMEN et al. [28] implantaram 70 homo e heteroenxertos decelularizados na via de saída do ventrículo direito em pacientes submetidos à operação de Ross e em cardiopatias congênitas complexas, com três anos de evolução clínica.

Nosso protocolo inicial envolve o uso exclusivo de homoenxertos valvares decelularizados na via de saída do ventrículo direito. Nossa preferência por homoenxertos deve-se ao fato de existirem diferenças significativas interespécies na qualidade e quantidade da matriz extracelular. Tendo em vista a importância da interdependência matriz extracelular - células para que as condições de crescimento e funcionalidade celular sejam ótimas - o uso de homoenxertos valvares nos parece, no momento, mais apropriado.

Os quatro pacientes operados tiveram evolução clínica normal, com dados preliminares de exame clínico e ecocardiográficos bastante satisfatórios. Por certo somente com a observação clínica prolongada conclusões mais definitivas poderão ser alcançadas.

CONCLUSÕES

Heteroenxertos descelularizados implantados na via de saída do ventrículo direito de carneiros jovens tiveram desempenho hemodinâmico satisfatório por períodos de até cinco meses de evolução.

Os explantes mostraram que as cúspides estavam bem preservadas, sem sinais de degeneração e/ou calcificação. Microscopicamente pode-se observar a repopulação gradativa da matriz extracelular por fibroblastos e células endoteliais.

Espera-se que hetero ou homoenxertos valvares descelularizados apresentem maior durabilidade tardia quando comparados aos homoenxertos convencionais. Sem dúvida, a possibilidade de implante de valvas realmente viáveis, com capacidade regenerativa, representa um grande avanço na terapêutica cirúrgica das valvopatias, sendo de grande impacto nos resultados.

A experiência clínica inicial com homoenxertos descelularizados já foi iniciada, sendo os resultados preliminares satisfatórios.

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Article receive on sábado, 1 de novembro de 2003

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