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ARTIGO ORIGINAL

A operação de Norwood modificada para tratamento da síndrome de hipoplasia do coração esquerdo

Fernando A Fantini; Bayard GONTIJO FILHO; Cristiane Martins; Roberto Max Lopes; Eliane Heiden; Ektor Vrandecic; Mário Oswaldo Vrandecic

DOI: 10.1590/S0102-76382004000100009

INTRODUÇÃO

A Síndrome de Hipoplasia do Coração Esquerdo (SHCE) é uma doença na qual o ventrículo esquerdo e a aorta apresentam graus variados de hipoplasia. Vem sempre acompanhada de estenose ou atresia da valva mitral e/ou aórtica. Compreende cerca de 2% das cardiopatias congênitas, sendo a quarta anomalia mais diagnosticada no primeiro ano de vida. Sem tratamento é fatal em 100% dos casos, sendo que 95% das crianças morrem no primeiro mês de vida. É ainda a causa mais freqüente de óbito por cardiopatia na primeira semana de vida [1].

Atualmente, existem duas formas de tratamento: o transplante cardíaco neonatal e a reconstrução paliativa estagiada descrita por NORWOOD et al. [2]. O transplante cardíaco tem importantes limitações, que são a pequena disponibilidade de doadores compatíveis e os efeitos colaterais adversos da imunossupressão a longo prazo [3]. Assim sendo, a operação de Norwood é uma atrativa alternativa para o tratamento da SHCE. O primeiro estágio envolve a criação de uma ampla comunicação entre o ventrículo direito sistêmico através do tronco da artéria pulmonar e a aorta descendente e arco aórtico reconstruídos e o estabelecimento de uma fonte controlada de fluxo pulmonar através de uma anastomose sistêmico-pulmonar. No segundo estágio, a derivação sistêmico-pulmonar é substituída por uma anastomose cavopulmonar bidirecional (Glenn modificado). O terceiro estágio é completado com a operação de Fontan ou similar, completando o tratamento.

A operação de Norwood, no entanto, continua sendo um desafio, com taxas de mortalidade imediata e tardia elevadas [4]. A versão clássica, na qual a aorta ascendente e o arco aórtico são alargados por materiais como o homoenxerto ou pericárdio bovino, tem alta incidência de obstrução do arco aórtico [5]. Várias técnicas de reconstrução da neo-aorta sem o uso de material heterólogo foram então apresentadas na literatura [6,7]. O objetivo deste estudo é apresentar os resultados obtidos no nosso Serviço com o tratamento da SHCE, utilizando a operação de Norwood modificada por FRASER and MEE [8], na qual o arco aórtico e vasos supra-aórticos são amplamente mobilizados e anastomosados à artéria pulmonar proximal e à aorta descendente, somente com a utilização de tecidos do próprio paciente.

MÉTODO

De janeiro a dezembro de 2002, cinco recém-nascidos (dois do sexo feminino e três do masculino) portadores da SHCE foram submetidos à operação de Norwood modificada. A idade variou de dois a nove dias (média: 5,0 ±2,7 dias) e o peso de 2,5 a 3,7 kg (média: 3,0 ±0,4 kg).

Os cinco pacientes apresentavam a SHCE clássica, definida como atresia ou estenose, mitral e/ou aórtica, ventrículo esquerdo hipoplásico, vasos da base normalmente relacionados e septo interventricular intacto. Uma criança era ainda portadora de interrupção do arco aórtico do tipo B e outra apresentava isomerismo atrial esquerdo com veia cava superior esquerda persistente. Um paciente tinha interrupção da veia cava inferior, com drenagem venosa pelo sistema ázigos.

O diâmetro da aorta ascendente, medido por ecocardiograma pré-operatório, variou de 5 a 8 mm (média: 6,2±1,3 mm).

No pré-operatório, três pacientes apresentavam condições clínicas estáveis, com boa perfusão periférica e diurese. Uma criança apresentou instabilidade hemodinâmica e acidose importante, tendo sido eletivamente intubada e recebido suporte inotrópico no dia anterior à operação e outra foi transferida de outro hospital já intubada. Todos estavam em uso de prostaglandina E1.

É importante salientar que o protocolo estabelecido para esta primeira fase exclui pacientes com aorta inferior a 4 mm e com complicações infecciosas graves.

No primeiro estágio, a técnica cirúrgica empregada foi esternotomia mediana e timectomia total, realizadas em todas as crianças, permitindo a retirada de remendo de pericárdio que, preparado em solução de glutaraldeido a 4%, foi empregado na reconstrução da bifurcação da artéria pulmonar. A aorta ascendente, arco aórtico, aorta descendente e os troncos supra-aórticos foram extensamente mobilizados, assim como o tronco de artéria pulmonar e ramos direito e esquerdo. O circuito de circulação extracorpórea (CEC) foi estabelecido com uma cânula arterial colocada no ducto arterioso e uma cânula única no átrio direito.

No paciente com interrupção do arco aórtico, outra cânula arterial foi colocada na aorta na altura do tronco braquiocefálico. Após entrada em CEC, o ducto arterioso foi ligado proximalmente à cânula arterial para se evitar sobrecarga volumétrica do ventrículo. Durante a fase de resfriamento, o tronco de artéria pulmonar foi transeccionado obliquamente próximo à origem dos ramos pulmonares e o coto distal foi fechado com o remendo de pericárdio autólogo. Com o estabelecimento de hipotermia profunda a 16°C e parada cardiocirculatória total (PCCT), cardioplegia sangüínea com lidocaína e magnésio foi injetada pela cânula arterial, após pinçamento da aorta descendente e dos troncos supra-aórticos. Todas as cânulas foram removidas e atriosseptectomia foi realizada através da bolsa de canulação atrial. Todo o tecido ductal foi ressecado e a curvatura menor do arco aórtico amplamente aberta desde a artéria subclávia até a aorta ascendente. O arco foi reconstruído pela anastomose da aorta descendente ao istmo e arco aórtico distal. O tronco de artéria pulmonar foi, então, anastomosado ao conjunto anterior e à aorta ascendente. Durante a fase de reaquecimento, anastomose sistêmico-pulmonar (Blalock-Taussig modificado) foi construída entre a artéria inominada direita e ramo direito da artéria pulmonar, tendo sido usada prótese de politetrafluoretileno (PTFE) de 3,0mm em três pacientes e de 3,5mm em dois (Figura 1).



Previamente ao segundo estágio, o paciente foi submetido a estudo ecocardiográfico e cinecardiográfico. Foi realizada operação de Glenn bidirecional com CEC e sem parada cardíaca. A prótese de PTFE implantada na primeira cirurgia foi ressecada e a veia cava superior anastomosada na mesma arteriotomia pulmonar que foi convenientemente aumentada.

RESULTADOS

Os tempos de CEC e PCCT variaram de 128 a 212 minutos (média: 154 min) e 41 a 60 minutos (média: 52,8 ± 9,0 min), respectivamente. Com pequenas modificações técnicas recentemente introduzidas, o tempo de PCCT diminuiu para próximo de 40 minutos, nos últimos pacientes operados.

Todas as crianças sobreviveram ao ato operatório e foram encaminhadas ao centro de tratamento intensivo (CTI) em condições clínicas estáveis. O esterno foi fechado em um a três dias (média: 2 ± 0,7 dias), não tendo sido observadas complicações relacionadas com a tática. O tempo de intubação variou de dois a nove dias (média: 4,0 ± 2,8 dias) e de permanência no CTI de seis a nove dias (média: 6,8 ± 1,3 dias).

Não foram necessárias reintervenções cirúrgicas no período pós-operatório. As complicações clínicas observadas foram: uma criança com atelectasia pulmonar e outra com sepse, responsável pelo único óbito hospitalar observado. Não foram observadas complicações neurológicas ou renais.

O tempo de internação hospitalar foi em média de 10 dias. Quatro crianças receberam alta hospitalar, contribuindo para uma taxa de sobrevivência imediata de 80%.

No seguimento pós-operatório tardio, ocorreu um óbito dois meses após a alta hospitalar. A criança foi atendida em outro hospital e teve diagnóstico de insuficiência respiratória por aspiração de leite. Não foi possível a realização de autópsia para confirmação da causa de óbito.

Os três sobreviventes já foram estudados por cateterismo cardíaco, sendo que o Blalock-Taussig modificado encontra-se patente, sem evidências de distorção ou estenose da artéria pulmonar e não há evidências de obstrução do neo-arco aórtico em nenhum deles. Uma criança foi submetida ao segundo estágio com a confecção de anastomose cavopulmonar do tipo Glenn bidirecional com 10 meses de vida, com excelente evolução pós-operatória. As outras duas crianças aguardam a realização do segundo estágio. Portanto, em um seguimento de 12 meses, a taxa de sobrevivência é de 60%.

COMENTÁRIOS

A mortalidade imediata do tratamento da SHCE tem sido reportada na literatura como sendo de 60 %[9]. Porém, com modificações na técnica operatória, na tecnologia da CEC e no manejo pré-operatório por equipes multidisciplinares, sobrevivência de até 80-90% tem sido relatada [4,10]. Dentre os fatores de risco para mortalidade após a operação de Norwood, destacam-se o baixo peso de nascimento [11], diagnóstico do subtipo anatômico [12], anomalias cardíacas associadas [13], condições clínicas pré-operatórias inclusive necessidade de ventilação mecânica [4] e o diâmetro da aorta ascendente [10]. Por ser um grupo pequeno de pacientes e uma experiência inicial, nossa casuística não permite análise desses fatores de risco, porém de uma maneira geral os pacientes foram de menor risco cirúrgico, o que em parte explica a sobrevivência imediata de 80% e tardia de 60%. É importante citar que os pacientes foram relacionados, sendo critério para inclusão aorta igual ou superior a 4 mm.

Um dos pontos críticos na operação originalmente descrita por NORWOOD et al. [2] envolve o uso extensivo de remendos de alargamento na delicada e hipoplásica aorta de recém-natos. Esses remendos, sejam homo ou heteroenxertos, certamente não vão acompanhar o crescimento das crianças e ainda sofrer alterações degenerativas que evidentemente comprometem o resultado tardio [6]. Dentre as modificações relatadas na literatura [14-16], optamos pela técnica descrita por FRASER e MEE [8], que efetivamente só utiliza tecidos autólogos na reconstrução da neo-aorta, mesmo na presença de coarctação ou interrupção do arco aórtico. Nesses cinco pacientes não foi necessário o reimplante da aorta ascendente no tronco da artéria pulmonar, como subseqüentemente proposto por POIRIER et al. [10], primeiro porque abrimos a curvatura menor do arco aórtico extensamente, até bem próximo à origem da artéria coronária esquerda, e também porque o grau de hipoplasia da aorta ascendente na nossa casuística foi menor do que nos descritos por POIRIER et al. [10].

Outro ponto importante com relação à técnica diz respeito ao diâmetro da prótese de PTFE empregada na construção da anastomose sistêmico-pulmonar. Analisando a fisiologia da circulação na cirurgia de Norwood em modelo computacional, MIGLIAVACCA et al. [17] observaram que o uso de derivações de maior diâmetro desvia uma maior proporção do débito cardíaco para os pulmões, diminuindo com isto a perfusão sistêmica. Assim, alguns autores têm sugerido o uso de próteses de PTFE de no máximo 3 mm, o que facilitaria o manejo da relação fluxo pulmonar -fluxo sistêmico (Qp/Qs) após a correção [6]. Utilizamos prótese de 3 mm nos recém-natos de até 3 kg e de 3,5 mm nas crianças maiores.

No entanto, é preocupante a persistente incidência de morte durante o primeiro ano de vida dentre os pacientes sobreviventes ao primeiro estágio. Em alguns estudos, elas atingem de 12 a 15%, são em geral súbitas, inexplicáveis e anteriores à realização do cavopulmonar bidirecional [13]. Uma das causas possíveis é o fluxo pulmonar inadequado, causado por oclusão do Blalock-Taussig modificado, que pode ter sido a causa do óbito tardio observado em um dos nossos casos, já que a criança faleceu em franca insuficiência respiratória, inicialmente imputada a uma provável aspiração. Por isto, os autores têm procurado encurtar o intervalo entre o primeiro estágio e a realização da anastomose cavopulmonar [4]. Alternativa bastante atraente é a modificação técnica proposta por SANO et al.[18], que consiste da confecção de conduto ventrículo direito - artéria pulmonar com prótese de PTFE de 5 mm. Apesar de requerer uma incisão na parede anterior do ventrículo direito sistêmico, o fluxo pela artéria pulmonar é anterógrado, além do que próteses maiores são ocluídas com maior dificuldade.

Uma das vantagens da presente técnica é a baixa incidência de obstrução do novo arco aórtico. Em recente publicação com os resultados dessa técnica, POIRIER et al. [10] observaram que apenas 5% dos pacientes operados necessitaram de operação para correção de obstrução do novo arco aórtico. Utilizando técnica cirúrgica semelhante numa série de 120 pacientes, ISHINO et al. [19] encontraram 16 pacientes (23%) com obstrução do novo arco aórtico, dos quais 10 foram dilatados com balão com sucesso e seis foram corrigidos cirurgicamente. Na nossa série, embora pequena, não observamos a presença de obstrução do neo-arco aórtico.

CONCLUSÕES

Embora a amostra seja pequena e o tempo de seguimento limitado, a operação de Norwood modificada, em que apenas tecidos autólogos são utilizados na reconstrução da via de saída sistêmica do coração e do arco aórtico, mostrou-se eficaz e com bom resultado cirúrgico, sem evidências de obstrução do arco aórtico reconstruído.

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Article receive on quarta-feira, 1 de outubro de 2003

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