Homem de 44 anos, com dor torácica crônica há um ano, apresentou dois episódios de acidentes vasculares encefálicos isquêmicos, desencadeados pela oclusão e trombose das artérias carótida e subclávia esquerdas, em aneurisma sifilítico gigante de arco aórtico roto. O paciente foi submetido à correção cirúrgica com sucesso via esternotomia mediana, utilizando-se proteção cerebral anterógrada e perfusão corporal distal contínuas. Aspectos referentes à técnica operatória utilizada e ampla revisão bibliográfica das diferentes formas de apresentação do comprometimento cardiovascular na sífilis terciária são discutidos.
A case of a 44 years old man with chronic chest pain since one year and two episodes of stroke, secondary to a giant ruptured syphilitic aortic arch aneurysm and left carotid and left subclavian arteries occlusion, is reported. The patient has been successfully operated through a median sternotomy and antegrade selective cerebral and distal corporeal continuous perfusion. Technical details of the total surgical correction performed and bibliographic review, concerning different aspects of tertiary syphilitic cardiovascular compromise are discussed.
INTRODUÇÃO
A fase terciária da sífilis, que já foi responsável por 5 a 10% das causas de óbito de origem cardiovascular e a principal etiologia dos aneurismas de aorta torácica, tornou-se rara após o advento da antibioticoterapia efetiva. O comprometimento cardiovascular ocorre em cerca de 10% dos pacientes portadores de lues não tratada, podendo se manifestar em um período de 5 a 40 anos após o contágio inicial. A aorta ascendente é afetada em cerca de 50% dos casos, sendo a formação de aneurismas saculares e o estreitamento ostial coronariano, as manifestações clínicas mais comuns da aortite sifilítica. O arco aórtico e o segmento descendente estão comprometidos em 35% e 15% dos casos, respectivamente.
A dor torácica é a manifestação clínica mais comum, geralmente secundária à rápida expansão do aneurisma aórtico luético, que se caracteriza por uma alta taxa de rotura espontânea, que é a principal responsável pela mortalidade de até 80% no primeiro ano de diagnóstico, sem a correção cirúrgica adequada (1-3).
Consideramos o presente caso de especial interesse por tratar-se de um sobrevivente, portador de aneurisma luético roto, limitado ao arco aórtico, com oclusão de dois vasos braquiocefálicos, tratado cirurgicamente com sucesso, cujas primeiras manifestações clínicas foram dois episódios de acidentes vasculares encefálicos (AVCE) isquêmicos e inédito na literatura especializada, que seja do conhecimento dos autores.
RELATO DO CASO
Paciente do sexo masculino, 44 anos, negro, atendido em 8/2001, apresentou-se com quadro de dor torácica contínua, retroesternal alta, desde há um ano. Referia dois episódios isolados de AVCE isquêmicos, com intervalo de três dias, manifestados por hemiplegia direita, dislalia e disartria, concomitantes ao início da dor torácica, comprovados por exame tomográfico cerebral. Apresentava também rouquidão e disfagia intensa para alimentos sólidos, de caráter progressivo, associada a emagrecimento de 13 Kg no mesmo período. O paciente era portador de miocardiopatia crônica de etiologia desconhecida, em tratamento clínico há cerca de 4 anos.
Ao exame físico, notava-se evidente circulação colateral venosa em toda a parede anterior do tórax e dos membros superiores, veias jugulares túrgidas em posição ortostática, hemiparesia direita, importante desvio do ictus cordis para a esquerda, sopro sistólico em região retroesternal alta, com intensidade de 2+/6 e presença de terceira bulha.
À radiografia de tórax notava-se grande alargamento do mediastino superior, com desvio traqueal para a direita, aumento da área cardíaca e diminuição volumétrica importante do pulmão esquerdo (Figura 1). A tomografia computadorizada (TC) contrastada de tórax revelou gigantesca dilatação do arco aórtico, com diâmetro externo máximo de 13 cm, trombose parcial de sua luz, justaposta ao manúbrio e ao corpo esternal alto (Figura 2). A aortografia revelou grande dilatação do arco aórtico, que comprometia o segmento distal da aorta ascendente e proximal da descendente, dilatação moderada do tronco braquiocefálico, com estreitamento de sua origem, oclusão das artérias carótida e subclávia esquerdas, que se contrastavam retrogradamente. As artérias coronárias apresentavam-se com aspecto angiográfico normal (Figura 3). O ecocardiograma transesofágico confirmou os achados anteriores e afastou qualquer comprometimento valvar concomitante.
Os exames laboratoriais revelaram apenas contagem global de plaquetas no limite inferior da normalidade, teste para sífilis tipo VDRL (Veneral Disease Research Laboratories) positivo com titulação de 1:64 e FTA-ABS (teste de fluorescência da absorção do anticorpo antitreponema) positivo para IgG.
O paciente foi submetido à correção cirúrgica com o auxílio da circulação extracorpórea (CEC) com oxigenador de membranas (Oximâ, Braile Biomédica) e bomba centrífuga (Biopumpâ, Medtronik), instalada através de canulação atrial direita via veia femoral e perfusão arterial femoral ipsilateral, parada circulatória total a 18°C de temperatura esofágica, seguida de esternotomia mediana. Observou-se grande massa no mediastino superior, que englobava várias estruturas da região, sem limites precisos, com importante compressão da veia cava superior e da veia inominada. Incisando-se a massa mediastinal, notou-se que se tratava de rotura crônica de aneurisma do arco aórtico, contida pelas estruturas adjacentes, com grande quantidade de trombos em seu interior. Não foi possível a identificação dos óstios das artérias carótida e subclávia esquerdas, estando os cotos aórticos, proximal e distal, conectados à cavidade da "massa" por tecido fibroso e por trombos organizados, não sendo identificada parede aórtica na dilatação. Em seguida à retirada dos trombos e à identificação do tronco braquiocefálico, iniciou-se a perfusão cerebral anterógrada, através de cânulas independentes, com balão de enchimento manual (cânula para retroplegia DLPâ), pelas artérias subclávia e carótida direitas. Sendo reiniciada a perfusão via femoral após o endopinçamento da aorta descendente, com uma sonda de Folley Nº14, seguida do reaquecimento sistêmico lento, mantendo-se uma pressão arterial média na artéria radial direita de 50mmHg (Figura 4). Foi realizada a interposição término-terminal de um tubo de dacron (Hemashield Goldâ, Meadox Medicals, Inc Oakland, NJ) n° 28 entre a aorta ascendente e a descendente, sem a interrupção da perfusão cerebral e sistêmica, seguida de outra prótese de dacron de 12mm, entre o tubo aórtico e a bifurcação do tronco braquiocefálico. Usou-se cola biológica (Colagelâ) como reforço para a hemostasia em todas as linhas de sutura. A cardioplegia sangüínea isotérmica 4:1 foi utilizada para a proteção miocárdica, com indução via anterógrada e manutenção via retrógrada contínua, pelo seio coronariano. O tempo de parada circulatória total foi de 10 min, o de perfusão foi de 1h, e o total da operação de 6h.
Não houve qualquer intercorrência peri-operatória com o paciente, tendo permanecido internado na UTI por 48h, sendo descontinuada a ventilação mecânica após 12h da admissão, sem qualquer alteração neurológica adicional às do pré-operatório.
O exame anatomopatológico dos fragmentos de aorta ressecados revelou aortite crônica sifilítica.
Após a confirmação diagnóstica etiológica, foi realizada a coleta de líquido cefaloraquidiano (LCR) que se mostrou normal, quando foi instituído tratamento com penicilina benzatina na dose de 2.400.000Ui via intramuscular, por três semanas seguidas.
COMENTÁRIOS
A sífilis afeta o sistema nervoso central, neurolues, em cerca de 5% dos portadores sintomáticos em sua fase terciária, caracterizando-se predominantemente pelo comprometimento meningovascular e da medula espinhal, sendo as manifestações isquêmicas já descritas com essa doença. O paciente apresentou como primeiros sintomas o quadro de AVCE isquêmico de repetição, concomitantes ao surgimento da dor torácica, o que sugere uma origem embólica e/ou que a oclusão da emergência da artéria carótida esquerda tenha ocorrido neste momento (3).
O comprometimento luético cardiovascular é responsável por 85% das manifestações clínicas da doença, apesar de se restringir a cerca de 10% dos indivíduos na fase terciária, e virgens de antibioticoterapia específica, podendo manifestar-se de várias formas distintas, sendo a formação de aneurismas aórticos a mais comum.
Acredita-se que a aorta ascendente seja o segmento mais freqüentemente afetado, pela presença de maior quantidade de vasos linfáticos nesta porção, o que intensificaria o grau da aortite secundária à presença do treponema, cujo substrato anatomopatológico caracteriza-se pelo: enrugamento inflamatório da camada média (mesoaortite), endarterite obliterante dos vasa-vasorum e pelo infiltrado de células plasmocitárias (4) .
Os aneurismas luéticos caracterizam-se geralmente pela forma sacular, muitas vezes multiloculados, o que predispõe ao maior comprometimento das estruturas mediastinais adjacentes, como: erosão óssea (costal, esternal e vertebral), compressão visceral (esofágica, traqueal e de veia cava) e lesão neuronal (nervo laringeu recorrente e gânglios simpáticos), e conseqüentemente, uma sintomatologia muito variada, como no presente caso (5-7).
A insuficiência valvar aórtica é geralmente secundária à dilatação anular causada pelo aneurisma aórtico, não sendo freqüente o comprometimento direto das válvulas pela doença (8).
Outras formas mais raras de comprometimento cardiovascular da doença são: os aneurismas do seio de Valsalva, dos vasos braquiocefálicos, das artérias coronárias, a dissecção aórtica e a fístula aorto-pulmonar (9-18).
O caso relatado apresentava um aneurisma exclusivo do arco aórtico, sem sinais inflamatórios evidentes ou calcificação macroscópica dos demais segmentos da aorta, apesar da positividade dos achados anatomopatológicos nestas porções.
A cineangiocoronariografia pré-operatória foi importante neste caso, pois afastou o comprometimento ostial, que pode estar presente mesmo na ausência de dilatação da aorta ascendente, sendo importante a lembrança da etiologia luética na presença de insuficiência aórtica e estenose ostial, em indivíduos jovens (19).
O diagnóstico da rotura organizada do arco, com a ausência de parede aórtica em toda a sua extensão, somente foi identificada após a retirada da grande quantidade de trombos antigos que havia em seu interior, não sendo suspeitada no pré-operatório por nenhum dos métodos de imagem utilizados, além de se tratar de uma complicação normalmente letal desse tipo de aneurisma. A TC é preferida no diagnóstico da doença aórtica sifilítica, pela sua superioridade ao ecocardiograma, na abordagem do arco aórtico (20-22).
Optou-se pela esternotomia mediana, precedida de parada circulatória total (PCT) em hipotermia profunda, através da perfusão átrio-femoral, para evitar-se lesão da parede anterior do aneurisma, que parecia comprometer a tábua posterior do manúbrio esternal à TC. Esta tática cirúrgica foi facilitada pela ausência de insuficiência valvar aórtica, comum na doença aórtica sifilítica, o que provocaria distensão ventricular esquerda, e risco de baixo débito após a reperfusão coronariana. Outra alternativa seria a bitoracotomia transesternal sem a PCT prévia, que já foi descrita para essa situação, e que nos parece particularmente útil, quando há insuficiência aórtica concomitante à erosão do esterno (23).
O tempo de PCT foi bastante curto, limitando-se à esternotomia, à abertura do aneurisma aórtico e à canulação seletiva das artérias subclávia e carótida direitas, sendo restabelecida a CEC com baixa pressão, para a perfusão cerebral anterógrada e corporal distal, após o endopinçamento aórtico descendente. A recuperação neurológica pós-operatória ocorreu sem particularidades, sendo possível a extubação após 12h de ventilação mecânica. Não foi possível a identificação das artérias carótida e subclávia esquerdas, para realizar a perfusão cerebral anterógrada biemisférica, por se encontrarem cronicamente ocluídas. Acreditamos que tenha havido perfusão deste hemisfério através do polígono de Willis, já que os vasos braquiocefálicos esquerdos foram contrastados retrogradamente à angiografia pré-operatória, condição considerada fundamental por alguns autores, para garantir a eficiência da técnica, especialmente quando realizada com temperaturas sistêmicas mais elevadas (23).
Temos utilizado a proteção cerebral por perfusão anterógrada para a abordagem do arco aórtico, mais recentemente no Serviço, tendo todos os pacientes consecutivos apresentado evolução neurológica semelhante, o que nos fez abandonar a técnica de retroperfusão cerebral, rotineiramente utilizada há vários anos, cujos benefícios ainda são controversos, o que coincide com a tendência recente de vários dos grandes centros especializados em tratamento das doenças da aorta (24-30).
A etiologia sifilítica somente foi confirmada após a correção cirúrgica através do exame anatomopatológico que revelou: substituição da camada média por fibrose, espessamento em torno dos vasa-vasorum, com áreas de trombose e focos de infiltração linfo-plasmocitária; que são todos achados comuns à aortite crônica luética.
As provas sorológicas nem sempre encontram-se positivas na fase terciária da doença, especialmente o VDRL, sendo importante a realização de testes específicos antitreponema, como o FTA-ABS, que se mantém indefinidamente positivo. Para proceder-se ao tratamento antibiótico mais adequado é sempre indicada a realização do exame do LCR, quando houver confirmação anatomopatológica do comprometimento cardiovascular (31).
A antibioticoterapia específica não afasta totalmente o surgimento de futuras manifestações da doença, mesmo após a erradicação do treponema pallidum, o que torna obrigatório o acompanhamento clínico permanente destes pacientes.
Em recente relato de 145 pacientes submetidos à correção de aneurisma da aorta ascendente, no período de 1989 a 1999, identificou-se a etiologia sifilítica em apenas 3 casos (2%), o que confirma a raridade da doença em sua fase terciária, atualmente. Entretanto, existem relatos epidemiológicos de um aumento mundial do número absoluto de casos de sífilis primária e secundária na última década, coincidentes ao agravamento da epidemia de AIDS, pondo-se em discussão a volta da necessidade de investigação sorológica comunitária sistemática no futuro(31).
Devido à raridade da etiologia sifilítica para os aneurismas da aorta, mesmo no nosso meio, tende-se a negligenciar a investigação sorológica e/ou anatomopatológica complementar, o que tem grandes implicações terapêuticas perioperatórias e tardias, sendo importante lembrar-se desta causa em indivíduos adultos jovens, com aneurismas calcificados de aorta ascendente e/ou de arco, associados ou não à estenose de óstio coronariano.
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