Article

lock Open Access lock Peer-Reviewed

8

Views

ARTIGO ORIGINAL

Insuficiência mitral: comparação entre o tratamento clínico e cirúrgico a médio prazo de acordo com a classe funcional

Kanim Kalil KASSAB0; Amer Kalil KASSAB0

DOI: 10.1590/S0102-76382002000200005

INTRODUÇÃO

A insuficiência mitral é considerada doença cardíaca comum, grave e de difícil controle, podendo o doente permanecer assintomático durante vários anos. O tratamento cirúrgico geralmente melhora a sintomatologia clínica, mas a disfunção ventricular residual, quando presente, apresenta prognóstico desfavorável a médio prazo.

A operação deve ser realizada precocemente tão logo o paciente comece a apresentar sintomatologia relacionada à disfunção ventricular esquerda.

O objetivo deste estudo é comparar o benefício a médio prazo do tratamento cirúrgico em relação ao tratamento clínico nos doentes portadores de insuficiência mitral e disfunção ventricular esquerda que se encontram em classe funcional III e IV da NYHA.

CASUÍSTICA E MÉTODOS

Foram incluídos em nosso estudo retrospectivo, através da análise de prontuários, 113 doentes portadores de insuficiência mitral, submetidos a tratamento clínico ou cirúrgico. Foram excluídos os portadores de insuficiência mitral secundária à rotura de músculo papilar, endocardite, insuficiência coronariana, doenças congênitas e trauma. A idade dos pacientes variou de 29 a 67 anos (média de 47 ±4,3anos), sendo 81(71,7%) do sexo feminino.

O diagnóstico inicial foi feito pelo exame físico, complementado por ecocardiograma bidimensional transtorácico, que revelava regurgitação mitral que variava de + a 4+/6+.

O contato inicial com o doente e/ou familiares, para obtermos as informações necessárias para o desenvolvimento do estudo foi realizado via telefone. Os doentes foram divididos em três grupos: A, B e C.

• Grupo A - classe funcional I e II: 75 doentes tratados clinicamente.

• Grupo B e C - classe funcional III e IV: 38 doentes.

• Grupo B - 20 doentes não operados.

• Grupo C - 18 doentes operados.

Todos os doentes foram operados por esternotomia mediana, seguida por pericardiotomia. Após heparinização com 4 mg/ kg de peso eram canuladas a aorta ascendente e as 2 veias cava. Após a instalação de CEC, todos eram submetidos a hipotermia moderada (28o C), pinçamento total e contínuo da aorta e proteção miocárdica com cardioplegia tipo St.Thomas a 40 C e atriotomia esquerda. Em todos os pacientes submetidos à troca valvar mitral preservamos a cúspide posterior, e naqueles submetidos à plastia valvar mitral foram preservadas ambas as cúspides.

Foi obtido o valor de odds ratio para a associação entre óbito e realização de operação, e respectivo intervalo de confiança 95%. O teste do qui-quadrado foi realizado para verificação da significância estatística, estabelecendo-se como limite p= 0,05.

RESULTADOS

Dos 113 doentes portadores de insuficiência mitral, 47 (41,6%) apresentavam dispnéia e cansaço, 17 (15 %) queixa de palpitações, 31 (27,4%) realizavam consulta de rotina devido à presença de sopro, 11 (9,7%) queixa de precordialgia e 7 (6,2%) com outras queixas.

O ecocardiograma bidimensional com doppler evidenciava acometimento de ambas as cúspides em 77 (68,1%) doentes, da cúspide anterior em 26 (23,1%) e da posterior em 10 (8,8%); regurgitação mitral de leve a moderada em 30 (26,5%) doentes e importante em 83 (73,4%); fração de ejeção (FE) ³60% em 32 (28,3%) doentes e < 60% em 81(71.7%); diâmetro atrial esquerdo £ 40mm em 26 (23%) doentes e > 40 mm em 87 (77%).

O eletrocardiograma evidenciava que 9 (8,0%) doentes apresentavam fibrilação atrial, sendo que 1 (0.9%) pertencia ao grupo A, 5 (4.4%) ao B e 3 (2.7%) ao C.

A cineangiocoronariografia com ventriculografia foi realizada em 81 (71.7%) doentes, onde 7 (6,2 %) apresentavam coronariopatia associada. A hipertensão arterial estava presente em 38 (33,6 %) e a fibrilação atrial em 21 (18,6 %).

De acordo com a classificação de NYHA, 51 doentes (45,1%) encontravam-se em classe I, 24 (21,2%) em classe II, 21 (18,6 %) em classe III e 17 (15,1%) em classe IV.

Os 75 (66,4%) doentes que se encontravam em classe funcional I e II da NYHA foram tratados clinicamente e apresentaram taxa de mortalidade, após 4 anos, de 12%.

Dos 38 (33,6%) doentes que se encontravam em classe funcional III e IV da NYHA, 20 (52,6%) foram tratados apenas clinicamente e 18 (47,4%) foram submetidos a tratamento cirúrgico.

O risco de ir a óbito, em 4 anos, para os pacientes não operados foi 4 vezes maior do que para os submetidos a cirurgia (OR= 4,28; IC95%), apresentando respectivamente índice de mortalidade de 55% e 22,2% (p= 0,083).

Os pacientes submetidos ao tratamento cirúrgico apresentaram taxa de mortalidade intra-hospitalar de 5,5% e de 16,7 % no período de 4 anos.

A plastia valvar foi realizada em 4 (22,2%) doentes, não havendo óbitos, e o implante de prótese em 14 (77,8%), sendo 11 biológicas e 3 mecânicas.

O taxa de mortalidade global após 4 anos foi de 21,2% e as causas de óbitos foram: insuficiência cardíaca congestiva (ICC) em 10 (41,6 %) doentes, acidente vascular cerebral hemorrágico (AVCH) em 1 (4.2%), acidente vascular cerebral isquêmico (AVCI) em 3 (12,5%), endocardite infecciosa (EI) em 2 (8,3%), insuficiência renal(IR) em 1 (4,2%), arritmia (ARRIT) em 3 (12,5%) e outras em 4 (16,7 %). As causas de óbitos estão distribuídas de acordo com a classe funcional da NYHA - Tabela 1.



COMENTÁRIOS

A maioria dos pacientes portadores de insuficiência mitral que procura auxílio médico apresenta como queixa principal dispnéia e cansaço, sendo que 66,3% encontrava-se em classe funcional I e II da NYHA. A incidência desta doença é maior no sexo feminino (71,7%), acometendo prioritariamente ambas as cúspides, seguido da anterior e finalmente da posterior.

Sabemos que a taxa de mortalidade dos doentes portadores de insuficiência mitral, que se encontram em classe funcional I e II da NYHA após 5 e 10 anos é, respectivamente, de 18 ± 4% e 33 ± 9 % e para aqueles que se encontram em classe funcional III e IV é de 86 ± 9 % em 5 anos, sendo que menos de 5 % chegam ao 10o ano (1).

Apesar da fração de ejeção não representar parâmetro fidedigno para avaliar o grau de disfunção ventricular esquerda, já que estes doentes cursam inicialmente com elevação desta, alguns estudos citam que os doentes com FE ³ 60% apresentam taxa de mortalidade em 5 e 10 anos, respectivamente, de 24 ± 4% e 39 ± 8% e os que apresentam FE < 60%, respectivamente, de 47 ± 11% e 60 ± 12% (2-5).

Quando o diâmetro atrial esquerdo for £ 40 mm, os doentes apresentam taxa de mortalidade, respectivamente, em 5 e 10 anos, de 18 ± 5% e 59 ± 12% e quando > 40mm, respectivamente, de 47 ± 9% e 75 ± 10% (6,7).

É sabido que a fibrilação atrial é responsável por um grande número de complicações principalmente o tromboembolismo sistêmico e que o uso de anticoagulantes diminui a incidência desta. Em nossa casuística todos os doentes com fibrilação atrial faziam uso de anticoagulantes.

Observamos que 2 (10%) doentes pertencentes ao grupo B e 1(5.6%) ao grupo C apresentaram quadro de acidente vascular cerebral isquêmico (AVCI). Não temos número suficiente de casos para comparar estatisticamente a incidência de tromboembolismo sistêmico entre os grupos de doentes pertencentes a classe funcional III e IV que receberam tratamento clínico ou cirúrgico.

Analisando os dados obtidos anteriormente, observamos que a taxa de mortalidade a médio prazo é maior naqueles pacientes que apresentam fração de ejeção £ que 60% e diâmetro atrial esquerdo (3) que 40 mm. A classificação funcional de NYHA, a fração de ejeção e o tamanho do átrio esquerdo podem ser usados como fatores prognósticos em relação à sobrevida a médio prazo destes doentes. Sendo assim, o ecocardiograma continua sendo o exame de eleição para determinar os parâmetros acima citados (8).

Em nosso estudo, a maioria dos pacientes encontrava-se em classe funcional I e II da NYHA e quando tratados clinicamente apresentou taxa de mortalidade após quatro anos de 12%. Aqueles que se encontravam em classe funcional III e IV da NYHA, que foram tratados cirurgicamente, apresentaram taxa de letalidade global de 22,2% após quatro anos, e quando tratados apenas clinicamente este taxa subia para 55%. Evidencia-se um risco maior de óbito nos pacientes não operados. Apesar de não se verificar significância estatística, observou-se uma diferença marcante entre os grupos que poderá ser confirmada com a continuidade do estudo, envolvendo um número maior de pacientes.

Segundo a literatura (10-13), a plastia mitral é considerada uma boa opção, devido à possibilidade de preservar as cúspides nativas da valva e o aparelho subvalvar , mantendo a geometria ventricular esquerda e evitando o implante de prótese e suas complicações.

Em nossa casuística houve apenas 4 (22,2%) doentes submetidos à plastia mitral com preservação de ambas as cúspides e manutenção da função ventricular, número este insuficiente para uma análise estatística. Baseando-se neste pequeno número, acreditamos que há uma tendência dos doentes submetidos a esta operação apresentarem melhor evolução a médio prazo, quando comparados àqueles submetidos à troca valvar.

CONCLUSÕES

Em nosso estudo concluímos que :

• Os pacientes que se encontram no grupo I e II da NYHA podem ser tratados clinicamente com boa resposta;

• Nos pacientes que se encontram em classe funcional III ou IV, o tratamento cirúrgico apresenta melhor resposta e menor taxa de letalidade a médio prazo em relação aqueles no mesmo grupo tratados apenas clinicamente.









REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1- Phillips H R, Levine F H, Carter JE et al. Mitral valve replacement for isolated mitral regurgitation: analysis of clinical course and late postoperative left ventricular ejection fraction. Am J Cardiol 1981; 48: 647-54.
[ Medline ]

2- Hochreiter C, Niles N, Devereux RB, Kligfield P, Borer JS Mitral regurgitation: relationship of noninvasive descriptors of right and left ventricular performance to clinical and hemodynamic findings and to prognosis in medically and surgically treated patients. Circulation 1986; 73:900-12.
[ Medline ]

3- Rich S, Sheikh A, Gallastegui J, Kondos GT, Mason T, Lam W - Determination of left ventricular ejection fraction by visual estimation during real-time two-dimensional echocardiography. Am Heart J 1982; 104: 603-6.
[ Medline ]

4- Quinones MA, Waggoner AD, Reduto LA et al. - A new, simplified and accurate method for determining ejection fraction with two-dimensional echocardiography. Circulation 1981; 64:744-53.
[ Medline ]

5- Vaziri SM, Larson MG, Benjamin EJ, Levy D Echocardiographic predictors of nonrheumatic atrial fibrilation: the Framingham Heart Study. Circulation 1994; 89:724-30.

6- Gehl LG, Mintz GK, Kotler MN, Segal BL Left atrial volume overload in mitral regurgitation: a two dimensional echocardiografic study. Am J Cardiol 1982, 49: 33-8.
[ Medline ]

7- Burwash IG, Blackmore GL, Koilpillai CJ Usefulness of left atrial and left ventricular chamber sizes as predictors of the severity of mitral regurgitation. Am J Cardiol 1992; 70: 774-9.
[ Medline ]

8- Mintz GS, Kotler MN, Segal BL, Parry WR Twodimensional echocardiographic recognition of rupture chordae tendineae. Circulation 1978; 57:244-50.

9- Rosen SE, Borer JS, Hochreiter C et al. Natural history of the asymptomatic/minimally symptomaitc patient with severe mitral regurgitation secondary to mitral valve prolapse and normal right and left ventricular performance. Am J Cardiol 1994; 74:374-80.

10- Luxereau P, Dorent R, De Gevigney G, Bruneval P, Chomette G, Delahaye G Aetiology of surgically treated mitral regurgitation. Eur Heart J 1991; 12(Suppl.B):2-4.

11- Brandão CMA, Pomerantzeff PMA, Grinberg m, Stolf nag, jatene ad - Análise tardia de 291 pacientes submetidos à substituição valvar por próteses metálicas. Rev Bras Cir Cardiovasc 1995; 10: 50-5.
[ Lilacs ]

12-Braile DM, Volpe MA, Ramin SL, Souza DRS - Tratamento cirúrgico das valvopatias Parte 1. Rev Bras Cir Cardiovasc 1994; 9:113-22.
[ Lilacs ]

13-Braile DM, Volpe MA, Ramin SL, Souza DRS - Tratamento cirúrgico das valvopatias Parte 2. Rev Bras Cir Cardiovasc 1994; 9:159-68.
[ Lilacs ]

CCBY All scientific articles published at www.bjcvs.org are licensed under a Creative Commons license

Indexes

All rights reserved 2017 / © 2024 Brazilian Society of Cardiovascular Surgery DEVELOPMENT BY