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ARTIGO ORIGINAL

Insuficiência mitral: comparação entre o tratamento clínico e cirúrgico a médio prazo de acordo com a classe funcional

Kanim Kalil KASSAB0; Amer Kalil KASSAB0

DOI: 10.1590/S0102-76382002000200005

RESUMO

CASUÍSTICA E MÉTODOS: Analisamos, retrospectivamente, o índice de mortalidade a médio prazo de 113 doentes portadores de insuficiência mitral, diagnosticados clínica e ecocardiograficamente, e submetidos a tratamento clínico ou cirúrgico. A idade dos pacientes variou de 29 a 67 anos, com média de 47± 4,3 anos, sendo 81 (71,7%) doentes do sexo feminino. De acordo com a classificação de NYHA, 51 (45,1%) doentes encontravam-se em classe funcional I, 24 (21,2%) em classe II, 21 (18,6%) em classe III e 17 (15,1%) em classe IV. RESULTADOS: Após 4 anos, observamos que o taxa de mortalidade global foi de 21,2%. Todos os 75 (66,4%) doentes que se encontravam em classe funcional I e II receberam apenas tratamento clínico e apresentaram taxa de mortalidade de 12%. Dos 38 pacientes que se encontravam em classe funcional III e IV, 18 (47,4%) foram submetidos a tratamento cirúrgico e apresentaram taxa de mortalidade de 22,2%, sendo 5,5% intra-hospitalar e 16,7% no período de 4 anos. Os 20 (52,6%) doentes que recusaram a operação apresentavam condições clínicas semelhantes aos operados e foram submetidos a tratamento clínico, havendo índice de mortalidade de 55%. CONCLUSÃO: Concluímos que a insuficiência mitral apresenta alto índice de mortalidade e que o tratamento cirúrgico para os doentes que se encontram em classe funcional III e IV da NYHA apresenta menor índice de mortalidade a médio prazo quando comparado ao tratamento clínico, devendo ser indicado sempre quando possível.

ABSTRACT

MATERIAL AND METHODS: We analyzed retrospectively the medium term mortality index in 113 patients with mitral regurgitation diagnosed clinically and echocardiographic who have undergone clinical or surgical treatment since January 1995 until December 1998. The age ranged from 29 to 67 years (mean 47 ± 4.3 years ) and 81 (71.7%) patients were female. In NYHA classification, 51 (45.1%) patients belonging to functional class I, 24 (21.3 %) class II 21 (18.6%) class III and 17 (15 %) class IV. RESULTS: After 4 years we observed that the mortality rate was 21.2%. All the 75 (66.4%) patients belonging to FC (NYHA) I and II, who received only clinical treatment presented mortality rate of 12%. From the 38 patients belonging to FC (NYHA) III and IV, 18 (47.4 %) were submitted to surgical treatment and showed mortality rate of 22.2%: (5.5% surgical mortality and 16.7% during 4 years). The 20 (52.6 %) patients that refused the surgery and presented similar clinical conditions to those operated, were treated clinically and demonstrated mortality rate of 55%. CONCLUSION: We conclude that the mitral regurgitation exhibit high mortality rate and that surgical treatment to the patients belonging to FC ( NYHA) III and IV reveals low mortality rate medium term when compared with clinical treatment.
INTRODUÇÃO

A insuficiência mitral é considerada doença cardíaca comum, grave e de difícil controle, podendo o doente permanecer assintomático durante vários anos. O tratamento cirúrgico geralmente melhora a sintomatologia clínica, mas a disfunção ventricular residual, quando presente, apresenta prognóstico desfavorável a médio prazo.

A operação deve ser realizada precocemente tão logo o paciente comece a apresentar sintomatologia relacionada à disfunção ventricular esquerda.

O objetivo deste estudo é comparar o benefício a médio prazo do tratamento cirúrgico em relação ao tratamento clínico nos doentes portadores de insuficiência mitral e disfunção ventricular esquerda que se encontram em classe funcional III e IV da NYHA.

CASUÍSTICA E MÉTODOS

Foram incluídos em nosso estudo retrospectivo, através da análise de prontuários, 113 doentes portadores de insuficiência mitral, submetidos a tratamento clínico ou cirúrgico. Foram excluídos os portadores de insuficiência mitral secundária à rotura de músculo papilar, endocardite, insuficiência coronariana, doenças congênitas e trauma. A idade dos pacientes variou de 29 a 67 anos (média de 47 ±4,3anos), sendo 81(71,7%) do sexo feminino.

O diagnóstico inicial foi feito pelo exame físico, complementado por ecocardiograma bidimensional transtorácico, que revelava regurgitação mitral que variava de + a 4+/6+.

O contato inicial com o doente e/ou familiares, para obtermos as informações necessárias para o desenvolvimento do estudo foi realizado via telefone. Os doentes foram divididos em três grupos: A, B e C.

• Grupo A - classe funcional I e II: 75 doentes tratados clinicamente.

• Grupo B e C - classe funcional III e IV: 38 doentes.

• Grupo B - 20 doentes não operados.

• Grupo C - 18 doentes operados.

Todos os doentes foram operados por esternotomia mediana, seguida por pericardiotomia. Após heparinização com 4 mg/ kg de peso eram canuladas a aorta ascendente e as 2 veias cava. Após a instalação de CEC, todos eram submetidos a hipotermia moderada (28o C), pinçamento total e contínuo da aorta e proteção miocárdica com cardioplegia tipo St.Thomas a 40 C e atriotomia esquerda. Em todos os pacientes submetidos à troca valvar mitral preservamos a cúspide posterior, e naqueles submetidos à plastia valvar mitral foram preservadas ambas as cúspides.

Foi obtido o valor de odds ratio para a associação entre óbito e realização de operação, e respectivo intervalo de confiança 95%. O teste do qui-quadrado foi realizado para verificação da significância estatística, estabelecendo-se como limite p= 0,05.

RESULTADOS

Dos 113 doentes portadores de insuficiência mitral, 47 (41,6%) apresentavam dispnéia e cansaço, 17 (15 %) queixa de palpitações, 31 (27,4%) realizavam consulta de rotina devido à presença de sopro, 11 (9,7%) queixa de precordialgia e 7 (6,2%) com outras queixas.

O ecocardiograma bidimensional com doppler evidenciava acometimento de ambas as cúspides em 77 (68,1%) doentes, da cúspide anterior em 26 (23,1%) e da posterior em 10 (8,8%); regurgitação mitral de leve a moderada em 30 (26,5%) doentes e importante em 83 (73,4%); fração de ejeção (FE) ³60% em 32 (28,3%) doentes e < 60% em 81(71.7%); diâmetro atrial esquerdo £ 40mm em 26 (23%) doentes e > 40 mm em 87 (77%).

O eletrocardiograma evidenciava que 9 (8,0%) doentes apresentavam fibrilação atrial, sendo que 1 (0.9%) pertencia ao grupo A, 5 (4.4%) ao B e 3 (2.7%) ao C.

A cineangiocoronariografia com ventriculografia foi realizada em 81 (71.7%) doentes, onde 7 (6,2 %) apresentavam coronariopatia associada. A hipertensão arterial estava presente em 38 (33,6 %) e a fibrilação atrial em 21 (18,6 %).

De acordo com a classificação de NYHA, 51 doentes (45,1%) encontravam-se em classe I, 24 (21,2%) em classe II, 21 (18,6 %) em classe III e 17 (15,1%) em classe IV.

Os 75 (66,4%) doentes que se encontravam em classe funcional I e II da NYHA foram tratados clinicamente e apresentaram taxa de mortalidade, após 4 anos, de 12%.

Dos 38 (33,6%) doentes que se encontravam em classe funcional III e IV da NYHA, 20 (52,6%) foram tratados apenas clinicamente e 18 (47,4%) foram submetidos a tratamento cirúrgico.

O risco de ir a óbito, em 4 anos, para os pacientes não operados foi 4 vezes maior do que para os submetidos a cirurgia (OR= 4,28; IC95%), apresentando respectivamente índice de mortalidade de 55% e 22,2% (p= 0,083).

Os pacientes submetidos ao tratamento cirúrgico apresentaram taxa de mortalidade intra-hospitalar de 5,5% e de 16,7 % no período de 4 anos.

A plastia valvar foi realizada em 4 (22,2%) doentes, não havendo óbitos, e o implante de prótese em 14 (77,8%), sendo 11 biológicas e 3 mecânicas.

O taxa de mortalidade global após 4 anos foi de 21,2% e as causas de óbitos foram: insuficiência cardíaca congestiva (ICC) em 10 (41,6 %) doentes, acidente vascular cerebral hemorrágico (AVCH) em 1 (4.2%), acidente vascular cerebral isquêmico (AVCI) em 3 (12,5%), endocardite infecciosa (EI) em 2 (8,3%), insuficiência renal(IR) em 1 (4,2%), arritmia (ARRIT) em 3 (12,5%) e outras em 4 (16,7 %). As causas de óbitos estão distribuídas de acordo com a classe funcional da NYHA - Tabela 1.



COMENTÁRIOS

A maioria dos pacientes portadores de insuficiência mitral que procura auxílio médico apresenta como queixa principal dispnéia e cansaço, sendo que 66,3% encontrava-se em classe funcional I e II da NYHA. A incidência desta doença é maior no sexo feminino (71,7%), acometendo prioritariamente ambas as cúspides, seguido da anterior e finalmente da posterior.

Sabemos que a taxa de mortalidade dos doentes portadores de insuficiência mitral, que se encontram em classe funcional I e II da NYHA após 5 e 10 anos é, respectivamente, de 18 ± 4% e 33 ± 9 % e para aqueles que se encontram em classe funcional III e IV é de 86 ± 9 % em 5 anos, sendo que menos de 5 % chegam ao 10o ano (1).

Apesar da fração de ejeção não representar parâmetro fidedigno para avaliar o grau de disfunção ventricular esquerda, já que estes doentes cursam inicialmente com elevação desta, alguns estudos citam que os doentes com FE ³ 60% apresentam taxa de mortalidade em 5 e 10 anos, respectivamente, de 24 ± 4% e 39 ± 8% e os que apresentam FE < 60%, respectivamente, de 47 ± 11% e 60 ± 12% (2-5).

Quando o diâmetro atrial esquerdo for £ 40 mm, os doentes apresentam taxa de mortalidade, respectivamente, em 5 e 10 anos, de 18 ± 5% e 59 ± 12% e quando > 40mm, respectivamente, de 47 ± 9% e 75 ± 10% (6,7).

É sabido que a fibrilação atrial é responsável por um grande número de complicações principalmente o tromboembolismo sistêmico e que o uso de anticoagulantes diminui a incidência desta. Em nossa casuística todos os doentes com fibrilação atrial faziam uso de anticoagulantes.

Observamos que 2 (10%) doentes pertencentes ao grupo B e 1(5.6%) ao grupo C apresentaram quadro de acidente vascular cerebral isquêmico (AVCI). Não temos número suficiente de casos para comparar estatisticamente a incidência de tromboembolismo sistêmico entre os grupos de doentes pertencentes a classe funcional III e IV que receberam tratamento clínico ou cirúrgico.

Analisando os dados obtidos anteriormente, observamos que a taxa de mortalidade a médio prazo é maior naqueles pacientes que apresentam fração de ejeção £ que 60% e diâmetro atrial esquerdo (3) que 40 mm. A classificação funcional de NYHA, a fração de ejeção e o tamanho do átrio esquerdo podem ser usados como fatores prognósticos em relação à sobrevida a médio prazo destes doentes. Sendo assim, o ecocardiograma continua sendo o exame de eleição para determinar os parâmetros acima citados (8).

Em nosso estudo, a maioria dos pacientes encontrava-se em classe funcional I e II da NYHA e quando tratados clinicamente apresentou taxa de mortalidade após quatro anos de 12%. Aqueles que se encontravam em classe funcional III e IV da NYHA, que foram tratados cirurgicamente, apresentaram taxa de letalidade global de 22,2% após quatro anos, e quando tratados apenas clinicamente este taxa subia para 55%. Evidencia-se um risco maior de óbito nos pacientes não operados. Apesar de não se verificar significância estatística, observou-se uma diferença marcante entre os grupos que poderá ser confirmada com a continuidade do estudo, envolvendo um número maior de pacientes.

Segundo a literatura (10-13), a plastia mitral é considerada uma boa opção, devido à possibilidade de preservar as cúspides nativas da valva e o aparelho subvalvar , mantendo a geometria ventricular esquerda e evitando o implante de prótese e suas complicações.

Em nossa casuística houve apenas 4 (22,2%) doentes submetidos à plastia mitral com preservação de ambas as cúspides e manutenção da função ventricular, número este insuficiente para uma análise estatística. Baseando-se neste pequeno número, acreditamos que há uma tendência dos doentes submetidos a esta operação apresentarem melhor evolução a médio prazo, quando comparados àqueles submetidos à troca valvar.

CONCLUSÕES

Em nosso estudo concluímos que :

• Os pacientes que se encontram no grupo I e II da NYHA podem ser tratados clinicamente com boa resposta;

• Nos pacientes que se encontram em classe funcional III ou IV, o tratamento cirúrgico apresenta melhor resposta e menor taxa de letalidade a médio prazo em relação aqueles no mesmo grupo tratados apenas clinicamente.









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