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Experimental study of the protection provided by a cardioplegic solution of lidocaine and potassium in dogs

Altamiro Ribeiro Dias0; Paulo Sampaio Gutierrez0; Maria de Lourdes HIGUCHI0; Rodrigo LOURENÇÃO0; Everaldo MIRANDA0; Benedito dos SANTOS0; Maria Cristina Donadio ABDUCH0; Ricardo Ribeiro Dias0; Noedir A. G Stolf0; Sergio Almeida de OLIVEIRA0

DOI: 10.1590/S0102-76382002000100012

INTRODUÇÃO

A lidocaína tem sido usada como agente antiarrítmico rotineiramente(1), havendo na literatura vários trabalhos onde esse emprego é analisado.

Estudos farmacológicos de BIGGER e HOFFMAN(2) demonstraram que drogas antiarrítmicas do grupo da lidocaína produzem apenas pequenas alterações na despolarização e velocidade de condução nas fibras miocárdicas de Purkinge, quando os valores do potencial de repouso transmembrana são normais. Entretanto, os efeitos depressores sobre esses parâmetros são muito intensificados quando a membrana é despolarizada ou quando a freqüência de excitação está aumentada. A lidocaína acelera a repolarização da membrana.

Em seres humanos, para atingir concentrações eficazes rapidamente, a droga é infundida endovenosamente na dosagem de 0,7 a 1,4 mg/kg de peso corporal, podendo ser necessária uma segunda dose em 5 minutos. Não se deve infundir mais que 200 a 300 mg em uma hora.

O metabolismo da droga é hepático e sua meia vida é de 100 minutos (3).

Demonstra-se que animais submetidos experimentalmente à isquemia miocárdica por ligaduras transitórias de ramos coronarianos, quando protegidos por infusões de soluções com lidocaína, praticamente não apresentam arritmias quando reperfundidos, bem como as alterações histoquímicas são inexpressivas, sendo também melhor o desempenho do ventrículo esquerdo(4-13).

LEICHER et al.(13), em estudo experimental relatam as ações da lidocaína usada em cardioplegia sangüínea. Demonstram que a licocaína:

Induz a parada cardíaca pela inibição do influxo de sódio e da despolarização da membrana celular;

Tem propriedades antiarrítmicas que reduzem a incidência de arritmias no período de reperfusão;

Inibe o influxo celular de cálcio, bem como a liberação do cálcio intracelular;

Tem ação inibidora sobre a atividade enzimática da fosfolipase A, o que leva a um efeito estabilizador da membrana celular.

O uso da lidocaína em soluções cardioplégicas, isoladamente e/ou associada a eletrólitos como potássio, magnésio e outros componentes, tem sido freqüente. Vários trabalhos(14-18) relatam bom desempenho ventricular e menor incidência de arritmias, quando se emprega a lidocaína como agente cardioplégico.

DEMY et al.(19) fazem uma análise crítica do emprego de diferentes soluções cardioplégicas e do empirismo, que, no entender dos autores, cerca o assunto. Realçam o fato de que várias soluções cardioplégicas não foram adequadamente testadas e vêm sendo usadas clinicamente sem sólida base experimental.

O objetivo deste trabalho é avaliar experimentalmente em cães, uma nova proposta de cardioplegia. Esta proposta consiste no emprego de soluções sangüíneas normotérmicas e pode ser dividida em 2 fases: a 1ª fase é chamada de indução, a qual é feita através da injeção de solução sangüínea com lidocaína associada a pequena concentração de potássio, imediatamente após o pinçamento da aorta.

A 2ª fase, chamada de manutenção, é obtida através da injeção de sangue da linha arterial, durante 60 segundos, sob pressão da linha arterial, repetidas a cada 20 minutos.

Tomou-se como tempo de estudo o intervalo de 120 minutos.

Usou-se, como comparação, animais colocados em perfusão, com a mesma técnica, submetidos a parada anóxica, sem nenhuma proteção.

É preciso frisar que, no presente trabalho, não se pretendeu comparar esta técnica de cardioplegia com nenhuma outra, e, sim, tão somente com ausência de proteção miocárdica.

Pelas suas características, convencionou-se chamar de parada cardíaca aeróbica a esta técnica de cardioplegia.

MATERIAL E MÉTODO

Foram estudados 2 grupos de cães, com peso variando entre 20 e 25 kg. Todos animais foram submetidos a anestesia geral e ventilação por intubação endotraqueal, após o que foram operados mediante esternotomia mediana, sendo colocados em perfusão extracorpórea, canulando-se a aorta ascendente, próximo ao tronco braquiocefálico e o átrio direito. Procurou-se manter boas condições hemodinâmicas, bem como parâmetros hidroeletrolíticos, gasométricos e diurese normais. Em todos os animais foi utilizado o oxigenador de membranas pediátrico, os quais foram cedidos gentilmente pela Braile Biomédica.

O primeiro grupo, designado não protegido (NP), é composto de 5 cães, os quais após a instalação e estabilização da perfusão extracorpórea, foram submetidos à parada cardíaca anóxica através do pinçamento transversal da aorta ascendente, imediatamente antes da sutura em bolsa através da qual foi introduzida a cânula aórtica. Entre o plano valvar e a pinça, foi introduzido um cateter para a aspiração durante o pinçamento. O tempo total de anóxia foi de 120 minutos ininterruptos, não tendo sido tomada nenhuma medida para a proteção miocárdica. Todos os animais não se recuperaram, quando da reperfusão miocárdica após 120 minutos de pinçamento aórtico.

O segundo grupo, designado protegido (P), é composto de 9 cães e foi operado analogamente. Nesse grupo, entretanto, foi utilizada a técnica de cardioplegia apresentada por MIRANDA et al.(20), a qual consiste numa fase dita de indução, onde se produz a parada cardíaca, e na chamada fase de manutenção, onde o coração permanece parado durante o tempo de pinçamento da aorta.

A chamada indução é obtida pela injeção de 100 mg de lidocaína e 2,5 mEq de potássio, diluídos em 60 ml de sangue da linha arterial, sendo essa injeção feita através de uma derivação da linha arterial. Imediatamente após a injeção em bolo destes 60 ml, injeta-se sangue da linha arterial durante 30 segundos. A parada cardíaca é imediata.

A fase de manutenção consiste na injeção repetida de sangue da linha arterial, durante 30 segundos, de 20 em 20 minutos, ao longo de todo o período de pinçamento aórtico. Todos os 9 cães se recuperaram ao término do período de anóxia.

Todos os cães foram submetidos a estudos da função ventricular com a utilização de ecocardiogramas transepicárdicos com aparelho Aloka SSD 870 e transdutor de 5,0 mHZ. Os exames foram gravados em vídeo Panasonic AG-6200.

Os estudos ecocardiográficos foram realizados em 3 tempos: 1º basal, imediatamente antes do início da perfusão. O 2º exame foi feito, uma hora após a suspensão de perfusão, nos cães sobreviventes (Grupo P). O 3º exame foi feito cerca de 5 horas após a suspensão da perfusão. Através dessas avaliações mediu-se a função sistólica (Delta D) e a fração de ejeção (FE). Em cães normais os valores de Delta D variam de 30 a 45% e os da FE são iguais ou maiores que 0,65 (21-23).

Ao término da experimentação, os corações dos 14 animais foram removidos para estudos anatomopatológicos sob microscopia óptica e eletrônica.

Para microscopia óptica foram retirados fragmentos das paredes anterior e diafragmática do ventrículo esquerdo, bem como um fragmento da parede anterior do ventrículo direito. Após processamento habitual, os cortes foram emblocados em parafina. Foram produzidas secções de 3 a 4 micrômetros, as quais foram coradas pela hematoxilina e eosina.

A observação microscópica histológica, sob aumento de 400 vezes, abordou os seguintes aspectos no miocárdio: 1) edema intersticial; 2) infiltração de neutrófilos; 3) infiltração de mononucleares; 4) congestão, hemorragia, bandas de contração e necrose com presença de fibras homogêneas.

Todas essas variáveis foram quantificadas em cruzes, variando de 0 a 3 cruzes, de acordo com a seguinte padronização:

1) Edema intersticial

Esta avaliação foi subjetiva, de tal forma que as cruzes variaram com a maior ou menor separação das fibras miocárdicas.

2) Infiltração de neutrófilos

0 Ausência de infiltração

+ Presença de 5 ou mais neutrófilos em até 20% dos campos de 400 aumentos ou de menos que 5 destas células em mais de 207 dos campos.

++ Presença de 5 ou mais neutrófilos em 20 a 50% dos campos de 400x

+++ Presença de 5 ou mais neutrófilos em 50% ou mais dos campos de 400x

3) Infiltração de mononucleares

0 Ausência de infiltração

+ Presença de 10 ou mais mononucleares em até 20% dos campos de 400x ou de menos que 10 destas células em mais de 20% dos campos

++ Presença de 10 ou mais mononucleares em 20 a 50% dos campos de 400x

+++ Presença de 10 ou mais mononucleares em 50% ou mais dos campos de 400x.

4) Congestão, hemorragia, bandas de contração e necrose com presença de fibras homogêneas.

0 Ausência de lesão

+ Presença da lesão em até 10% dos campos histológicos

++ Presença da lesão em 10 a 25% dos campos histológicos

+++ Presença da lesão em mais de 25% dos campos histológicos

Foi elaborado um escore para cada variável em cada animal, que corresponde à soma ponderada dos valores de cada lâmina examinada, atribuindo-se peso 2 a cada um dos cortes do ventrículo esquerdo e peso 1 ao ventrículo direito. Dessa forma, o ventrículo esquerdo tem um peso de 4 para 1 em relação ao ventrículo direito, contemplando-se, assim, sua maior massa muscular. A análise e a quantificação foram feitas sem que o avaliador tivesse conhecimento do grupo a que cada cão pertencia.

É preciso assinalar que, das alterações acima descritas, tem particular importância a necrose de fibras miocárdicas em banda de contração. Não foram feitos cortes seriados.

Para microscopia eletrônica, os fragmentos após recortes adequados, foram fixados em glutaraldeído a 1%, sendo pós-fixados em tetróxido de ósmio e, após os procedimentos habituais, foram embebidos em araldite. Seções de 60 nanômetros foram examinadas em ultramiocroscopia Philips 301. Não foram feitos estudos planimétricos.

Foi realizada análise subjetiva dos fragmentos submetidos a exame ao microscópio eletrônico. Tais fragmentos foram retirados de diversas porções dos 2 ventrículos e seu número variou de 2 a 7. Os aumentos finais utilizados na observação situaram-se entre 3850 a 112000 vezes.

Avaliou-se a presença das seguintes características ultraestruturais nas células miocárdicas: interrupção do sarcolema, dilatação do retículo sarcoplasmático, espaços claros no sarcoplasma, aumento de lípides, diminuição do glicogênio, alterações mitocondriais tais como: tumefação, cristólise e presença de densidades amorfas. Foi avaliado, também, a banda I alargada, desaparecimento focal de miofilamento, bandas de contração e condensação de cromatina na periferia dos núcleos.

Foram vistas alterações menores em todos os casos, tais como dilatação do retículo sarcoplasmático, espaços claros no sarcoplasma, aumento de lípides, diminuição do glicogênio, alterações mitocondriais tais como: tumefação, cristólise e presença de densidades amorfas. Foi avaliado, também, a banda alargada, desaparecimento focal de miofilamentos, bandas de contração e condensação de cromatina na periferia dos núcleos.

Foram vistas alterações menores em todos os casos, tais como dilatação do retículo sarcoplasmático, certo grau de tumefação mitocondrial bem como retificação e destruição das cristas desta organela.

A quantidade de lípides e, mais ainda de glicogênio foi pouco valorizada por sua avaliação ser muito subjetiva.

De acordo com o exposto, os casos foram considerados como de alterações leves (L), moderados (M) e graves (G) (Tabela 1).



Registre-se que essa classificação tomou em consideração apenas a existência ou não das alterações, sem quantificá-las. Assim sendo, casos com alterações mais difusas podem estar igualados a outros em que as alterações eram mais focais.

Para facilitar a exposição, convencionou-se reunir valores próximos de escores, agrupando-se resultados relativamente semelhantes; assim é que quando a variação foi de 1 a 5, a alteração foi designada como leve (L).

Quando a variação for de 6 a 9, a alteração será designada como moderada (M).

Quando o escore for igual ou superior a 10, a alteração será designada como severa.

Não havendo alterações, a representação será A - ausente.

É preciso assinalar que, das alterações acima descritas, tem particular importância a necrose de fibras miocárdicas em banda de contração.

A análise estatística foi feita pela aplicação do teste exato de Fisher.

RESULTADOS

A análise dos parâmetros funcionais avaliados pela ecocardiografia transepicárdica mostrou que os 14 animais apresentavam valores normais nas medidas tomadas antes da instalação da circulação extracorpórea.

Todos os cães que não receberam cardioplegia não se recuperaram após 120 minutos de parada anóxica, apresentando quadro tipo "stone heart" quando do restabelecimento da circulação coronariana, vindo a falecer.

Os 9 animais que receberam proteção miocárdica recuperaram prontamente os batimentos cardíacos quando da reperfusão com condições hemodinâmicas satisfatórias, o que possibilitou a interrupção da perfusão sem problemas. Nesse grupo de 9 animais foram realizadas novas medidas da fração de ejeção e delta D, respectivamente 1 e 5 horas após a suspensão da perfusão extracorpórea.

Nas medidas tomadas 60 minutos após a reperfusão, verificamos que a fração de ejeção (FE 2) apresentava alterações moderadas em 5 animais, sendo que 1 cão apresentava FE2 normal. Um animal apresentava alterações severas e em 2 cães encontrou-se discreta alteração da fração de ejeção.

Em relação às medidas de delta D, 1 cão apresentava alteração severa, 2 cães apresentavam alterações discretas. Esses 3 animais são os mesmos que apresentavam frações de ejeção com alterações severa e discreta. Em um dos 5 animais com frações de ejeção moderadamente alteradas, verificou-se ser o valor de delta D normal. Nos 4 restantes, havia também alterações moderadas de delta D.

As medidas feitas 5 horas após o reinício da perfusão miocárdica mostraram que 7 cães readquiriram valores normais para a fração de ejeção e delta D (Tabela 2).



Foi realizada uma tabela de freqüências cruzadas (Tabela 3) a qual mostrou que 66,67% dos cães encontravam-se com alterações moderadas e/ou severas na segunda avaliação. Concomitantemente, 33,33% dos cães encontravam-se nas categorias normal ou discreta; 55,56% dos animais apresentavam alterações moderadas e/ou severas de delta D no mesmo momento, sendo que 44,44% apresentavam valores normais ou discretamente alterados.



Conforme se vê na Tabela 3, 7 animais readquirem performance normal na terceira avaliação, sendo que apenas 2 mantiveram alterações discretas. Assinale-se que esses 2 últimos animais apresentaram valores moderadamente alterados na segunda avaliação, tendo tido melhora funcional na última avaliação, quando melhoraram para discretamente alterados.

Do ponto de vista da avaliação ecocardiográfica, os resultados demonstram claramente um decréscimo de função na primeira hora após a reperfusão, que praticamente desaparece 5 horas após, havendo a obtenção de valores normais para a fração de ejeção e delta D.

Em todo o período pós circulação extracorpórea os cães foram mantidos anestesiados e em boas condições metabólicas e de ventilação.

Na avaliação anatomopatológica à microscopia óptica tem particular importância, devido a maior especificidade à presença de bandas de contração e à necrose de fibras homogêneas. A Tabela 4 apresenta os valores dos escores obtidos para as diferentes variáveis estudadas. A Tabela 5 mostra os valores do escores agrupados conforme exposto no método.





Verificamos que, no grupo de cães não protegidos (NP), em relação às bandas de contração, foram encontradas alterações severas em 3 cães e moderadas em 2. Já no grupo protegido, 7 animais não apresentavam essa alteração, sendo que em 2 essa alteração foi considerada discreta (Figuras 1 a 3). Em relação à necrose de fibras homogêneas, no grupo NP, 1 cão apresentava alteração severa. Dois animais apresentavam alteração discreta, sendo ausente nos 2 restantes.







No grupo protegido, ocorreram alterações discretas dessa variável em 5 animais, severa em 1 e ausente nos 3 restantes.

O teste exato de Fisher mostrou diferença altamente significativa entre os grupos NP e P, no que se refere às bandas de contração (p = 0,0005).

As demais variáveis estudadas mostraram clara tendência a alterações mais intensas no grupo não protegido, embora não tenha havido significância estatística.

Foram vistas alterações menores em todos os casos, tais como dilatação do retículo sarcoplasmático, certo grau de tumefação mitocondrial, bem como retificação e destruição das cristas dessa organela.

Em relação aos resultados obtidos na microscopia eletrônica dentro da padronização de escores que foi seguida, verificamos que, no grupo NP, 60% dos animais apresentavam alterações graves, as quais foram encontradas em 22,22% do grupo protegido (Tabela 1).

Alterações moderadas foram encontradas em 40% do grupo não protegido e em 33,33% do grupo protegido.

Já no grupo protegido pela cardioplegia, 44,44% apresentavam alterações consideradas leves.

Estes resultados sinalizam fortemente para maior severidade de lesões ultramicroscópicas no grupo não protegido (Figuras 4 e 5 e Tabela 1).





COMENTÁRIOS

Corações de cães, quando operados com perfusão extracorpórea e submetidos a parada cardíaca anóxica por pinçamento transversal da aorta ascendente, apresentam repercussões funcionais e anatomopatológicas quando da reperfusão, de intensidades variáveis e proporcionais ao tempo de isquemia.

DALLAN(24), em nosso meio, estudou o assunto em tese de doutoramento apresentada à FMUSP, em 1986. Demonstrou que cães submetidos a 60 minutos de parada cardíaca e reperfundidos posteriormente apresentavam intensas repercussões funcionais, com significativa queda da pressão arterial, elevação da pressão capilar pulmonar e acentuada queda do débito cardíaco. Nesses animais, os estudos anatomopatológicos realizados também demonstravam acentuadas alterações representativas de graus variáveis de necrose miocárdica.

Neste trabalho, demonstramos que, no grupo controle submetido a parada cardíaca por 120 minutos, os efeitos deletérios da isquemia foram tão intensos que nenhum cão sobreviveu. Os estudos anatomopatológicos revelaram alterações intensas compatíveis com necrose miocárdica.

Os animais protegidos com a técnica de cardioplegia aqui apresentada mostraram diferenças marcantes com o grupo controle. Assim é que, em primeiro lugar, não houve óbitos em nenhum desses cães. Em segundo lugar, a função cardíaca apresentou uma redução de cerca de 30% após a primeira hora de reperfusão, vindo a normalizar-se cerca de 5 horas após a reinstalação da circulação coronariana.

Estes fatos marcantes foram obtidos à custa da ação protetora da lidocaína, a qual já havia sido demonstrada por vários trabalhos (4,7).

ZHOU et al. (8) estudaram a ação protetora da lidocaína sobre o sistema nervoso central em cães submetidos a parada circulatória total, submetidos a perfusão extracorpórea com canulação pela artéria femoral direita e drenagem venosa pela veia jugular externa direita. Mantiveram o tórax fechado e utilizaram resfriamento de superfície para baixar a temperatura a 20°C. A essa temperatura, realizaram parada circulatória total por 90 minutos. Os animais foram divididos em 2 grupos: grupo controle e grupo no qual injetaram lidocaína na dose de 4mg/kg cerca de 2 minutos antes da parada circulatória e 2 mg/kg por ocasião do restabelecimento da circulação e do reaquecimento. As avaliações neurológicas realizadas no pós-operatório revelaram desempenho muito melhor no grupo em que se associou a lidocaína. Os animais foram sacrificados após 8 dias, sendo que os estudos anatomopatológicos revelaram alterações muito mais intensas nos cães não protegidos pela lidocaína. Os autores não referem óbitos nos 2 grupos, o que nos leva a inferir que o coração tolerou bem 90 minutos de parada circulatória a 20°C, diferentemente do que ocorre em condições de normotermia, como já demonstrado por DALLAN (24) e neste trabalho, com 60 e 120 minutos de anóxia, respectivamente.

Outro dado interessante são as dosagens de lidocaína utilizada. Para um cão de 25 kg, peso médio da maioria dos cães usados neste experimento, equivaleria a dizer uma infusão de 150 mg de lidocaína em 90 minutos. Neste trabalho, utilizamos apenas cerca de 4mg/kg de peso como dose única.

SUNAMORI et al. (9) estudaram experimentalmente em cães as ações de diferentes soluções cardioplégicas: magnésio e lidocaína, potássio e magnésio e apenas potássio. Usaram soluções cristalóides e perfusão extracorpórea com hipotermia a 20°C. Submeteram os animais a períodos de isquemia de 60 e 120 minutos, tendo dois grupos controles e um terceiro grupo no qual realizaram apenas toracotomia.

Analogamente ao que ocorreu no trabalho de ZHOU et al.(8), os cães submetidos a períodos de anóxia de 60 e 120 minutos sobreviveram. Entretanto, os estudos de função mitocondrial relatados demonstram lesões nas isquemias mais prolongadas. Os grupos que utilizaram soluções cardioplégicas e foram submetidos a isquemias durante 60 minutos não apresentaram grandes diferenças quanto aos parâmetros estudados. Entretanto, com 120 minutos de isquemia, a solução com magnésio e lidocaína apresentou um efeito protetor bastante significativo quando comparada às demais. Os autores chamam a atenção para o fato de que a hipotermia a 20°C, por si só, protege efetivamente o miocárdio quando a isquemia não ultrapassa 60 minutos. Embora feito com hipotermia acentuada, os resultados aqui obtidos confirmam os de DALLAN (24) e guardam alguma relação com os resultados de nosso trabalho.

SUNAMORI et al. (11) estudaram, em 1982, comparativamente, os efeitos protetores de soluções cardioplégicas, em cães submetidos a parada cardíaca por períodos de 120 minutos. Analisaram solução com potássio, insulina e glicose e solução com magnésio e lidocaína. Avaliaram a função cardíaca após 60 minutos de perfusão, bem como a ultraestrutura do miocárdio.

Demonstraram que, no grupo que foi protegido com solução cardioplégica à base de magnésio e lidocaína, o desempenho funcional do ventrículo esquerdo foi praticamente normal aos 60 minutos de reperfusão. Entretanto, após 120 minutos de isquemia sob hipotermia, o efeito protetor da cardioplegia com lidocaína foi evidente. No nosso material, verificamos que, na primeira hora após a reperfusão, houve uma queda de cerca de 30% na função ventricular, a qual retorna aos valores normais iniciais após 5 horas. Tal diferença, talvez possa ser explicada pela diferença de metodologia utilizada.

Os estudos bioquímicos e ultramicroscópicos do trabalho de SUNAMORI et al.(11) mostram também a superioridade da solução de magnésio e lidocaína.

Os autores chamam a atenção para as ações da lidocaína. Essa substância inibe o efluxo de potássio das mitocondrias e inibe o influxo de sódio, com efeito discreto sobre afluxo de cálcio através das membranas do sarcolema durante os potenciais de ação.

KYO et al. (12) estudaram também o uso de soluções cardioplégicas com lidocaína normocalêmicas e hipercalêmicas. Utilizaram cães nos quais foram injetadas as soluções sob hipotermia de 28°C e fizeram estudos hemodinâmicos, enzimáticos e morfológicos. Constataram que, no grupo em que se usou cardioplegia com lidocaína e baixas concentrações de potássio, os resultados foram significativamente superiores.

Em nosso material, os 100mg de lidocaína foram associados a 2,5 m/Eq de potássio. As demais infusões feitas a cada 20 minutos veicularam apenas sangue oxigenado sob pressão sistêmica. Essa baixa concentração de potássio injetada na primeira infusão talvez tenha colaborado com os bons resultados obtidos. Não houve, em nenhum momento de todos os experimentos, variação significativa das concentrações de potássio sangüíneo, as quais foram mantidas no limite superior da normalidade. As reinfusões, ao se veicular sangue da linha arterial, contribuíram para o que se chama na literatura de parada aeróbica.

Pelo exposto, entendemos que o método de cardioplegia utilizado foi eficiente na proteção do miocárdio.

CONCLUSÕES

a) Cães colocados em perfusão normotérmica e submetidos a parada cardíaca anóxica por 120 minutos, quando reperfundidos, apresentam o quadro de "stone heart", não recuperando os batimentos. Os estudos anatomopatológicos à microscopia de luz e à ultramicroscopia revelam danos celulares intensos, compatíveis com necrose celular.

b) O uso de cardioplegia sangüínea normotérmica, fazendo-se a indução com a infusão de 100 mg de lidocaína e 2,5 mEq de potássio e sangue arterial, provoca parada cardíaca imediata.

c) A manutenção da parada cardíaca é obtida com injeções repetidas a cada 20 minutos de sangue proveniente da linha arterial do circuito de perfusão, durante 30 segundos.

d) Verificamos queda da função contrátil de cerca de 30% na primeira hora após a reperfusão coronariana.

e) Todos os animais apresentaram função contrátil normal, quando estudados novamente cerca de 5 horas após a reperfusão.

f) No grupo de cães protegidos pelo método de cardioplegia em estudo, as alterações anatomopatológicas, a microscopia óptica e ultramicroscopia, encontradas após o sacrifício dos animais, foram inexpressivas.

g) A cardioplegia proposta é um método eficiente de proteção miocárdica, tanto do ponto de vista funcional como sob a análise morfológica.

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Article receive on Monday, January 1, 2001

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