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EDITORIAL

Assistência circulatória mecânica: uma grande lacuna na cirurgia cardíaca brasileira

Luiz Felipe Pinho MoreiraI; Anderson BenícioII

DOI: 10.1590/S0102-76382010000400005

Os dispositivos de assistência circulatória mecânica tornaram-se, ao longo dos últimos anos, peças essenciais no tratamento do choque cardiogênico e na manutenção do suporte circulatório de pacientes com insuficiência cardíaca terminal. O emprego destes dispositivos tem sido amplamente indicado como ponte para a posterior realização do transplante cardíaco, como tratamento de suporte para a recuperação do coração no infarto agudo do miocárdio e no pós-operatório de cirurgia cardíaca, ou mesmo para permitir a recuperação ventricular durante o repouso obtido pelo suporte circulatório mecânico prolongado em pacientes com cardiomiopatias [1,2]. Além disso, dispositivos mecânicos de assistência ao ventrículo esquerdo têm sido implantados, em alguns países, como terapia de destino no tratamento de pacientes portadores de insuficiência cardíaca terminal com contraindicações para o transplante cardíaco [1,2].

O desenvolvimento da cirurgia cardíaca no Brasil sempre se caracterizou pela incorporação das mais recentes tecnologias e tratamentos, nos mais diversos campos de atuação. Além disso, a especialidade inclui atualmente um grande número de procedimentos realizados, principalmente no tratamento da doença coronária [3,4]. Por outro lado, o emprego de dispositivos de assistência mecânica tem se limitado em nosso País ao suporte pós-operatório de pacientes submetidos à cirurgia cardíaca pelo emprego de bombas centrífugas e a algumas experiências isoladas com a utilização da circulação extracorpórea com oxigenador de membrana (ECMO) no pós-operatório de cirurgias cardíacas pediátricas [5] ou no tratamento do choque cardiogênico pós-infarto [6]. Do mesmo modo, o emprego de dispositivos de assistência mecânica como ponte para o transplante cardíaco também se resume a poucos casos realizados [7,8].

Apesar da longa história do transplante cardíaco no Brasil [9] e dos resultados promissores observados com esta terapêutica, principalmente no tratamento da cardiopatia chagásica [10], uma das principais limitações observadas para os resultados deste procedimento é a elevada mortalidade observada na fila de espera Dados do Sistema Estadual de Transplantes do Estado de São Paulo mostram que cerca de 50% dos pacientes listados para o transplante de coração nos últimos cinco anos faleceram na fila de espera. A ocorrência de choque cardiogênico em decorrência da falência circulatória progressiva é a principal causa de mortalidade em pacientes portadores de cardiomiopatias em fase avançada. Nesta condição, os índices de mortalidade podem atingir valores superiores a 60% em seis meses de seguimento, podendo ser ainda mais elevados em pacientes portadores de cardiopatia chagásica [11,12]. A ocorrência de choque cardiogênico também representa a principal causa de mortalidade na fila de espera para o transplante cardíaco em pacientes pediátricos. A este respeito, Jatene et al. [13] relatam a realização do transplante em apenas oito de 22 crianças portadoras de cardiomiopatia dilatada, com idade variando de 11 meses a 11 anos, que desenvolveram esta complicação e foram tratadas clinicamente.

Por causa da elevada mortalidade observada na presença da falência ventricular, a utilização de dispositivos de assistência circulatória mecânica é, na maioria das vezes, a única possibilidade de sobrevivência durante a espera do doador. Vários tipos de dispositivos têm sido empregados para servir como ponte para o transplante cardíaco e a experiência internacional com este tipo de terapêutica já soma milhares de casos [1,2]. Com base nesta experiência, os critérios de indicação da assistência circulatória mecânica estão bem estabelecidos [14], assim como o impacto da aplicação desta terapêutica na expectativa de vida dos pacientes [15].

Em nosso País, o manejo de pacientes que evoluem em choque cardiogênico em decorrência do comprometimento irreversível do miocárdio ventricular continua a se basear apenas no emprego da terapêutica medicamentosa [16,17].

Apesar da incorporação de novos fármacos no controle desta complicação, a mortalidade continua a ser elevada, reduzindo a expectativa de vida dos pacientes e a probabilidade de receber um transplante cardíaco [18].

Paralelamente, a experiência brasileira com o emprego de dispositivos mecânicos de assistência circulatória como ponte para a realização do transplante soma pouco mais de uma dezena de casos, nos quais foram empregados dispositivos paracorpóreos de assistência ventricular, em períodos que variaram de alguns dias a cerca de dois meses de suporte circulatório [7,8]. Desta experiência, destaca-se o emprego pioneiro de dispositivos de assistência circulatória mecânica em pacientes portadores de cardiopatia chagásica [8].

Apesar da existência de critérios de indicação bem estabelecidos nas Diretrizes nacionais de tratamento da insuficiência cardíaca [19], a falta de suporte financeiro por parte das agências responsáveis pela assistência à saúde no Brasil impede o acesso dos pacientes ao emprego de dispositivos mecânicos no tratamento da falência circulatória aguda. Por outro lado, outros tratamentos de alto custo têm sido financiados pelo Sistema Único de Saúde e pelo setor privado, como o emprego de ressincronizadores ventriculares e de desfibriladores implantáveis no tratamento da insuficiência cardíaca [20-22].

Estudos de custo-efetividade realizados em diversos países, a respeito do impacto da utilização de dispositivos mecânicos de assistência circulatória no tratamento da falência circulatória progressiva, mostram valores que variam entre US$ 48.000,00 (R$ 86.000,00) e US$ 90.000,00 (R$ 160.000,00) por ano de vida salvo e ajustado para qualidade (quality adjusted life years - QALY) [23]. Nestes estudos, não foi considerado o tipo de dispositivo empregado, sendo possível se antecipar valores próximos ao limite inferior para o emprego de dispositivos paracorpóreos, em comparação aos dispositivos implantáveis amplamente empregados em vários centros internacionais. Valores semelhantes aos apresentados com a assistência mecânica foram observados para o emprego da terapia de ressincronização cardíaca associada ao implante de desfibrilador em uma revisão sistemática que incluiu dados de mais de 3.400 pacientes [24]. Paralelamente, um estudo a respeito do emprego isolado de desfibriladores em pacientes com insuficiência cardíaca em nosso País revelou uma relação de custo-efetividade incremental de R$ 68.000,00 no cenário público e de R$ 90.000,00 no setor privado [25].

Com base nestes dados, podemos concluir que apesar do elevado custo do tratamento das doenças cardiovasculares no Brasil em relação à nossa renda per capita [26], temos sem dúvida argumentos para incorporar como opção terapêutica o implante de dispositivos de assistência circulatória mecânica, principalmente como ponte para a realização do transplante cardíaco. Este procedimento é responsável por índices de sobrevivência superiores a 70% em um ano, abrindo a perspectiva da realização do transplante em grande parte dos pacientes assistidos.


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