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ARTIGO ORIGINAL

Avaliação do comportamento biológico de homoenxertos valvares pulmonares descelularizados: estudo experimental em ovinos

Fábio Binhara NavarroI; Francisco Diniz Affonso da CostaII; Leonardo Andrade MulinariIII; Gustavo Klug PimentelIV; João Gabriel RoderjanV; Eduardo Discher VieiraVI; Lúcia de NoronhaVII; Nelson Itiro MiyagueVIII

DOI: 10.1590/S0102-76382010000300015

INTRODUÇÃO

O uso de homoenxertos valvares está bem estabelecido no tratamento cirúrgico de cardiopatias congênitas e valvopatias adquiridas. Dentre as técnicas de conservação dos homoenxertos, a criopreservação é a mais difundida. Descrita por O'Brien et al.[1], a criopreservação permite a estocagem mais prolongada destes enxertos e, em algumas séries, está associada à maior durabilidade quando comparada com outras técnicas de preparo. Mesmo assim, ainda não são os enxertos ideais, pois estão sujeitos à degeneração progressiva, especialmente em crianças e adultos jovens[2-5].

A degeneração dos homoenxertos tem caráter multifatorial, incluindo aspectos técnicos relacionados ao implante, tais como distorção, compressão esternal, sub ou superdimensionamento, e implante em posição anatômica ou extra-anatômica. Entretanto, é bem determinado que os homoenxertos desencadeiam resposta imunológica nos receptores, e alguns autores puderam correlacionar a intensidade desta reação com a degeneração tardia dos enxertos[6,7].

A reação imunológica decorre da incompatibilidade dos sistemas ABO [8,9] e HLA [10-15]. Antígenos HLA da classe I e II, presentes principalmente no endotélio e nas células intersticiais das valvas e parede arterial dos condutos, desencadeiam resposta imunológica doador-específica, tanto celular, com ativação de linfócitos T, como humoral, com a produção de anticorpos anti-HLA classe I e II[10-12,14,15].

Com o avanço da tecnologia de processamento de tecidos biológicos, a descelularização foi proposta como um método para reduzir ou mesmo eliminar a antigenicidade dos enxertos, e assim melhorar os resultados tardios. Essa técnica foi inicialmente proposta em 1998, por Bader et al.[16], sendo subsequentemente modificada por outros autores. Dentre os diferentes métodos de descelularização, foram descritos o uso de enzimas como a tripsina, a ribonuclease e desoxiribonuclease, soluções hipo e/ou hipertônicas, agentes tensoativos como dodecilsulfato de sódio (SDS), octilphenotoxietanol (Triton X-100), ácido deoxicólico, além do etanol e glicerol[16-20].

Além de retirar todas as células, "debris" celulares e DNA, a metodologia de descelularização deve, idealmente, preservar a integridade das fibras colágenas e elásticas da matriz extracelular, mantendo suas propriedades biomecânicas[21-23]. A matriz extracelular intacta, não antigênica e sem citotoxicidade residual é um pré-requisito para a biocompatibilidade e longevidade dos aloenxertos[24].

Diversos trabalhos já demonstraram que valvas descelularizadas podem ser semeadas "in vitro" com diferentes tipos celulares, utilizando técnicas de engenharia de tecidos, como também são repovoadas espontaneamente "in vivo", após o seu implante. Dependendo das características deste repovoamento, os enxertos seriam remodelados, apresentando capacidade regenerativa e de crescimento, podendo produzir todos os componentes da matriz extracelular, incluindo glicosaminoglicanos, fibras elásticas e colágenas. Tais características são encontradas, atualmente, apenas no autoenxerto pulmonar[24-27].

O objetivo deste estudo, experimental e descritivo, é analisar o comportamento histológico e funcional de homoenxertos pulmonares ovinos descelularizados por uma nova solução composta principalmente de dodecil sulfato de sódio a 0,1% e desenvolvida na PUCPR. Para caracterizar este comportamento, serão avaliados o repovoamento celular, a ocorrência de calcificação e a função valvar ao ecocardiograma.


MÉTODOS

Modelo animal

A amostra foi constituída por oito carneiros (Ovis aries) jovens da raça Suffolk, com idade média de quatro ± 0,5 meses (mínimo=3; máximo=5) e peso médio de 22,6±1,9kg (mínimo=20; máximo=25). Os animais foram operados no Hospital Veterinário da PUCPR e submetidos ao implante de homoenxertos pulmonares descelularizados em posição ortotópica. Além de acompanhados clinicamente, foram submetidos a ecocardiogramas seriados até o momento dos explantes, estes realizados com sete, 30, 90 e 180 dias de pós-operatório (dois animais em cada período).

Todos os procedimentos obedeceram ao protocolo de cuidados com animais do "Guide for the Care and Use of Laboratory Animals" (National Academy of Sciences, Washington, D.C., 1996) e do Colégio Brasileiro de Experimentação Animal (COBEA).

O trabalho foi aprovado no Comitê de Ética no Uso de Animais (CEUA) da PUCPR (Parecer nº 004.07/CEUA-PUCPR).

Preparo do enxerto

Os homoenxertos pulmonares foram colhidos de ovelhas jovens da mesma raça. Foram retirados os corações em condições assépticas e transportados em solução salina isotônica (a 4oC) até o Núcleo de Enxertos Cardiovasculares do Laboratório de Engenharia de Tecidos e Transplante Celular da PUCPR. Em câmara de fluxo laminar contínuo, foram dissecados os condutos pulmonares valvados e depois imersos em solução nutriente RMPI 1640® (Sigma) contendo antibióticos (cefoxitina 240µg/ml, lincomicina 120µg/ml, polimixina B 100µg/ml e vancomicina 50µg/ml) por período de 24 horas, também a 4oC.

Em seguida, foram descelularizados com a solução denominada PUC I (patente brasileira requerida sob o número PI0800603-2), composta predominantemente por dodecil sulfato de sódio (SDS) a 0,1%, com o auxílio de um agitador mecânico (Mesa Agitadora 109M®, Nova Ética Ltda). Após a descelularização, os enxertos foram conservados em meio nutriente com antibióticos (RPMI 1640®) a 4oC. Foram realizadas análises histológicas com hematoxilina-eosina de um segmento distal de cada conduto para comprovar a efetividade do processo de descelularização.

Procedimento cirúrgico

Sob anestesia geral, induzida e mantida com propofol e cloridrato de fentanila, as operações foram realizadas por toracotomia lateral esquerda, no 4o espaço intercostal. Após a anticoagulação sistêmica com heparina na dose de 250U/kg, foram introduzidas cânulas em aorta descendente e átrio direito para instalação da circulação extracorpórea, realizada em normotermia e com fluxo de 2,4 litros/m2. Não foi necessária a oclusão da aorta, mantendo-se o coração batendo.

Após a oclusão proximal e distal do tronco da artéria pulmonar, foram ressecados aproximadamente dois centímetros do conduto arterial nativo e as cúspides pulmonares nativas. Neste momento, foram aferidos os diâmetros dos anéis pulmonares nativos e dos enxertos. A reconstrução local foi efetuada com o implante do homoenxerto pulmonar descelularizado, interposto entre os cotos do tronco pulmonar. As anastomoses foram realizadas com fio de polipropileno 5.0 em sutura contínua. Não havendo sangramento significativo, a circulação extracorpórea era descontinuada. Não era necessária a reversão da heparina. Após a revisão da hemostasia e drenagem da cavidade pleural esquerda, o tórax foi fechado por planos anatômicos. Uma hora após a operação, o dreno torácico foi retirado.

Cuidados pós-operatórios

A analgesia foi realizada com flumexil. O ácido acetilsalicílico (100mg/dia) e o dipiridamol (75mg/d) foram administrados até a data do explante. Nas primeiras 24 horas de pós-operatório, as ovelhas permaneceram no Hospital Veterinário e depois foram encaminhadas para a fazenda da mesma instituição, onde receberam acompanhamento clínico-veterinário. Também foram avaliadas por ecocardiogramas seriados. Cada enxerto teve seu explante realizado conforme o cronograma do estudo, ou seja, dois animais com sete dias de pós-operatório, dois com 30, dois com 90 e, dois com 180 dias de pós-operatório.

Retirada dos homoenxertos

Para a retirada dos homoenxertos estudados, foi necessário o sacrifício destes animais, realizado no centro cirúrgico do hospital veterinário da instituição, com técnica asséptica, após indução anestésica com ketamina e manutenção com halotano. Por uma nova toracotomia lateral esquerda foi dissecado e isolado o enxerto. Neste momento, foram avaliados os aspectos macroscópicos e realizada a documentação fotográfica. Após a anticoagulação sistêmica com heparina, sob hipnose e anestesia, os carneiros receberam a infusão endovenosa de 40 mEq de cloreto de potássio para obtenção da parada cardíaca, permitindo o explante dos enxertos.

Análise ecocardiográfica

Os ecocardiogramas foram realizados por um único observador, em datas próximas aos 15, 45, 100 e 170 dias de pós-operatório. Com auxílio do "Doppler" contínuo e pulsado, foram avaliados os seguintes parâmetros ecocardiográficos: velocidade de fluxo (m/s), gradiente valvar (dado pela equação de Bernoulli simplificada, onde: gradiente valvar= 4.velocidade de fluxo2), competência valvar, mobilidade e espessamento das cúspides, presença eventual de calcificações, vegetações e trombos.

Análise macroscópica

Foram avaliados parâmetros como aderências, consistência do enxerto, presença e distribuição de calcificações, vegetações, trombos, aspecto e mobilidade das cúspides e diâmetro do anel valvar, aferidos através de velas de Hegar.

Análise microscópica

Um segmento longitudinal do enxerto, contendo as anastomoses proximal e distal, o conduto e a cúspide valvar, foi fixado com formaldeído a 10%, emblocado em parafina e cortado longitudinalmente (cortes de 4ìm). Para a análise histopatológica foram utilizadas as colorações de Hematoxilina-eosina, Pentacrômio de Movat e Alizarina Red pH 4,2 e 7,0.


RESULTADOS

Evolução clínica

Não houve óbito imediato e todas as ovelhas atingiram os períodos de seguimento predeterminados em boas condições clínicas, à exceção de um animal (ovelha 4), que no momento de sua eutanásia, 30 dias após o implante, apresentava um quadro de endocardite infecciosa com comprometimento do estado geral e perda ponderal de 16%.

Os demais animais que tiveram explantes realizados em sete e 30 dias apresentaram pequena variação ponderal. Já aqueles submetidos aos explantes em prazos maiores tiveram ganhos ponderais significativos, sendo de 61 e 71% para os dois animais submetidos aos explantes em 90 dias e de 73 e 76% para os dois animais de 180 dias.

Análise macroscópica

A avaliação macroscópica evidenciou que todos os enxertos mantiveram suas características iniciais, preservando a elasticidade e a integridade dos condutos, sem sinais de estenose ou dilatação. Independente do prazo de explante, todas as valvas mantiveram o aspecto fino e translúcido, com mobilidade normal de suas cúspides, sem sinais macroscópicos de degeneração ou calcificação (Figura 1). A exceção foi a ovelha 4, que apresentava endocardite infecciosa do enxerto, com a presença de vegetações e trombos recentes nas cúspides, com espessamento discreto das mesmas. Neste caso, também se notaram discretas calcificações nas anastomoses proximais e distais. Apesar da subjetividade na análise e quantificação, a intensidade das aderências pericárdicas sobre os enxertos foram semelhantes às encontradas nas estruturas nativas. Os dados da análise macroscópica encontram-se detalhados na Tabela 1.


Fig. 1 - Fotografia evidenciando aspecto translúcido e integridade da cúspide do homoenxerto descelularizado explantado após 180 dias (ovelha 7)




Diâmetro valvar

O diâmetro médio do anel pulmonar nativo foi de 18,7±1,9 mm (mínimo=16, máximo=22), enquanto que o diâmetro médio dos enxertos implantados foi de 20,0±2,0 mm (mínimo=17, máximo=23), mostrando a equivalência da proporção enxerto-receptor. Não houve variação no diâmetro dos enxertos explantados após sete e 30 dias. Porém, houve um aumento de 15,7% no diâmetro dos enxertos explantados após 90 dias. Da mesma forma, houve um aumento médio de 35,8% (33,3% e 38,2%) no diâmetro dos enxertos explantados após 180 dias. Os diâmetros valvares estão discriminados na Tabela 2.




Análise histológica

Hematoxilina-eosina:

Explantes de sete dias (ovelhas 1 e 2)

Apresentavam pouca reação inflamatória aguda na região periadventicial, constituída predominantemente por células com características de polimorfonucleares (neutrófilos). O restante da parede do conduto arterial estava praticamente acelular, exceto pela presença de algumas células, também polimorfonucleares, provenientes da migração através da anastomose e da luz do enxerto. Acompanhando esta atividade inflamatória, encontramos raros monócitos e histiócitos. Puderam-se observar, também, raras células endoteliais (uma a duas células/campo 400X). Neste período, também não se observou neovascularização. Os folhetos destes enxertos encontravam-se totalmente acelulares, sem sinais de inflamação, recelularização, reendotelização ou neovascularização. Não havia sinais de trombose.

Explantes de 30 dias (ovelhas 3 e 4)

Aos 30 dias de evolução, os condutos já se apresentavam parcialmente repovoados, especialmente na camada adventícia e média. Nesta fase, a reação inflamatória aguda já não era mais evidente, havendo poucos polimorfonucleares, dando lugar a células com morfologia de histiócitos, fibroblastos e miofibroblastos. A reendotelização também era mais evidente, nos permitindo observar cinco a seis células por campo de 400X.

O homoenxerto retirado da ovelha número 3 apresentava poucos neovasos, diferentemente da ovelha número 4, que apresentava muitos neovasos na sua adventícia, acompanhando o processo inflamatório secundário à endocardite bacteriana.

As cúspides valvares da ovelha número 3 continuavam praticamente acelulares. Na ovelha número 4 - animal que teve a endocardite bacteriana - notou-se intenso infiltrado inflamatório de polimorfonucleares e bactérias, provavelmente estafilococos. Este infiltrado inflamatório avançava até o conduto, junto da inserção das cúspides.

Enquanto não havia sinais de trombose no enxerto número 3, observaram-se alguns trombos nas cúspides da ovelha número 4.

Explantes de 90 dias (ovelhas 5 e 6)

Aos 90 dias, a recelularização dos condutos era abundante e homogênea, predominantemente por células com características de fibroblastos e miofibroblastos. Havia poucos monócitos e histiócitos. Esta recelularização organizada permitia a diferenciação da adventícia de uma camada médio-íntima. Havia muitos neovasos nas adventícias destes condutos. A reendotelização destes enxertos estava completa, inclusive nas cúspides. A recelularização das cúspides ainda era limitada, sendo melhor observada na camada ventricularis e orientando-se da base para a extremidade das cúspides. Não havia sinais de trombose destes enxertos.

Explantes de 180 dias (ovelhas 7 e 8)

Os condutos apresentavam completa recelularização, com aspecto histológico semelhante à artéria nativa. Havia grande quantidade de células com características microscópicas sugestivas de fibroblastos, miofibroblastos e células musculares lisas, melhor organizadas, permitindo a diferenciação das camadas do conduto em adventícia, média e íntima. Havia muitos neovasos nas adventícias destes condutos.

Aos 180 dias, as cúspides valvares também já apresentavam repovoamento significativo nas camadas ventricularis, fibrosa e esponjosa. A reendotelização também foi completa, não havendo sinais de trombos.

Pentacrômio de Movat

Os achados com a coloração de Movat corroboraram com aqueles observados no HE. Em todos os condutos pôde-se observar a organização normal e a integridade das fibras colágenas e elásticas, independentemente do prazo de explante. Nas cúspides, identificou-se a preservação da estrutura trilaminar em todos os enxertos: camada fibrosa - com o predomínio das fibras colágenas, camada espongiosa - com o predomínio de glicosaminoglicanos e camada ventricularis - mais celular.

A única exceção foram as cúspides da ovelha número 4, que em função da endocardite apresentavam total desorganização de suas estruturas.

Alizarina Red 4.2 e 7.0

Por estas colorações pôde-se evidenciar a ausência de cálcio tanto nos condutos como nas cúspides valvares, mesmo nos animais com 180 dias de evolução. Apenas nas ovelhas número 3 e 4, pudemos observar a presença de fosfato de cálcio (AR 4.2) e oxalato de cálcio (AR 7.0) em pequena quantidade nas anastomoses proximal e distal, caracterizando discreta calcificação nestas anastomoses (Figuras 2 a 4).


Fig. 2 - Evolução da recelularização de homoenxertos descelularizados ovinos explantados em diferentes prazos: A: 7 dias - restrita à adventícia; B: 30 dias - atingindo metade do conduto, C: 90 dias - atingindo quase toda a extensão do conduto, D: 180 dias - atingindo toda a extensão do conduto. (todos em H.E., 100X)


Fig. 3 - Fotomicrografia de homoenxerto descelularizado explantado após 180 dias. Recelularização atingindo a extremidade distal do folheto. (H.E., 100X)


Fig. 4 - Fotomicrografias de homoenxerto descelularizado explantado após 180 dias. A: Fibras elásticas íntegras no conduto (Russell-Movat, 200X); B: Estrutura trilaminar do folheto preservada (Russell-Movat, 100X)



Análise ecocardiográfica

A mobilidade das cúspides valvares permaneceu normal em todos os exames ao longo do seguimento, sem sinais de espessamento e/ou calcificação. As velocidades de fluxo, assim como os gradientes médios e instantâneos máximos, estiveram sempre baixos, próximos aos valores normais. Também não houve alterações significativas nos exames sequenciais, mesmo após 180 dias de evolução. As ovelhas 7 e 8 apresentaram insuficiência valvar mínima nos ecocardiogramas de 100 e 170 dias. Em todos os exames, a função de ventrículo direito era normal. Não foram observados sinais ecocardiográficos de trombos, vegetações e calcificação. O resumo dos achados ecocardiográficos encontra-se na Tabela 3.




DISCUSSÃO

O substituto valvar ideal deveria permitir a viabilidade celular, mantendo o potencial de remodelamento e regeneração da matriz extracelular, com capacidade de crescimento e evitando a degeneração tecidual progressiva[27]. Atualmente, apenas o autoenxerto pulmonar tem estas características[28].

Apesar de homoenxertos criopreservados apresentarem viabilidade celular, são justamente as células do doador que desencadeiam uma resposta imunológica por parte do receptor, relacionada principalmente com incompatibilidade HLA e ABO, a qual está relacionada com sua degeneração tardia[10-13,15]. Na tentativa de se melhorar os resultados com o uso de homoenxertos, Bader et al.[16] propuseram o método de descelularização como forma de eliminar ou minimizar esta resposta imunológica. Por se tratar de tecnologia recente, ainda existem muitas controvérsias quanto ao melhor método de descelularização, quanto ao uso de matrizes homólogas ou heterólogas, e quanto à necessidade da semeadura "in vitro" destes enxertos com células cultivadas em laboratório.

Nossa linha de pesquisa foi direcionada para o uso de matrizes homólogas, em vista de resultados desfavoráveis de matrizes heterólogas publicados por Simon et al.[29], e também pela possibilidade da transmissão de retrovírus para seres humanos[30].

O modelo experimental em ovinos jovens é bem estabelecido para o teste de substitutos valvares, uma vez que a fisiopatologia da degeneração e calcificação é semelhante aos seres humanos, porém em escala mais acelerada[31]. Além disso, possibilita a comparação de diferentes biopróteses, com custos menores que outros modelos animais, sendo facilmente reprodutível[32]. É importante ressaltarmos que a avaliação de novos substitutos valvares em modelos experimentais em ovinos é um estudo pré-clínico obrigatório, segundo o "US Food and Drug Administration Replacement Heart Valve Guidance"[33].

Os achados histológicos do presente estudo evidenciaram que os enxertos explantados após sete dias apresentavam um infiltrado inflamatório agudo, constituído basicamente por polimorfonucleares (neutrófilos), localizado principalmente na adventícia e próximo às anastomoses. Resultados semelhantes foram descritos por Elkins et al.[26] utilizando a tecnologia Synergraft®, onde este infiltrado inflamatório inicial e transitório não resultou em degeneração do enxerto e foi importante para a quimiotaxia de demais células, preparando o enxerto para o futuro repovoamento celular.

A transitoriedade da reação inflamatória aguda pode ser evidenciada já aos 30 dias, quando os neutrófilos foram substituídos por células mais maduras, com morfologia de histiócitos, fibroblastos e miofibroblastos. Nesse período, o repovoamento celular já havia atingido a camada média do conduto e pudemos evidenciar muitos neovasos na adventícia dos enxertos.

Os enxertos explantados após 90 dias exibiam uma recelularização abundante e homogênea, chegando até a camada íntima do conduto. As células predominantes tinham características muito sugestivas de fibroblastos e miofibroblastos, progressivamente organizados, nos permitindo identificar uma camada médio-íntima e uma camada adventícia, esta última com muitos neovasos. Enquanto as cúspides valvares dos enxertos explantados com sete e 30 dias estavam praticamente acelulares, após 90 dias pudemos evidenciar o início da recelularização da camada ventricularis das cúspides, progredindo da base para a extremidade das mesmas. Estes achados foram muito similares aos publicados por Elkins et al.[23], que demonstraram substancial recelularização do conduto e uma recelularização inicial da camada ventricularis dos folhetos valvares.

Após 180 dias, os enxertos apresentavam uma recelularização completa e organizada, semelhantemente a um conduto valvado nativo. Havia predomínio de células maduras, permitindo a diferenciação das três camadas do conduto: adventícia, média e íntima. Na adventícia, observamos muitos neovasos e, na camada média, células musculares. Enquanto que a recelularização do folheto de uma das ovelhas (no 7) atingia menos da metade da sua extensão, na outra ovelha (no 8) atingia mais da metade da extensão da cúspide. Estes achados também são semelhantes aos descritos por Elkins et al.[23]. Dohmen et al.[27], num estudo experimental em ovinos que receberam heteroenxertos descelularizados com ácido deoxicólico, também descrevem que mesmo após seis meses a recelularização do folheto não havia atingido sua extremidade.

O processo de reendotelização foi gradativo, sendo mais evidente após os 90 dias. Apesar de observarmos reendotelização completa dos condutos, a porção mais distal das cúspides ainda apresentava pequenas falhas de endotelização em alguns animais, mesmo após 180 dias. Numata et al.[34] encontraram uma reendotelização mais uniforme no mesmo período, inclusive das cúspides valvares, num modelo experimental em suínos que receberam homoenxertos descelularizados. Por outro lado, mesmo estudos que utilizaram a semeadura "in vitro" com células endoteliais de homoenxertos descelularizados, não puderam comprovar reendotelização da extremidade do folheto[24].

A presença de uma camada confluente de células endoteliais é fundamental na preservação da matriz subendotelial e na prevenção de trombose, decorrente da exposição do colágeno da membrana basal após a descelularização [24]. Este pode ser mais um argumento a favor da semeadura de células endoteliais cultivadas em laboratório previamente ao implante. Por outro lado, em nosso estudo não tivemos evidências de trombose dos enxertos.

À exceção da ovelha 4, que teve endocardite infecciosa, todos os demais animais apresentaram boa evolução clínica. Aqueles que foram submetidos ao explante em prazos maiores, 90 e 180 dias, tiveram significativos ganhos ponderais. Acompanhando estes ganhos ponderais, os homoenxertos valvares descelularizados apresentaram aumento no seu diâmetro de 15,7%, em 90 dias, e de até 38,2%, em 180 dias. Porém, não podemos afirmar se este crescimento foi proporcional ao esperado para este animal, pela falta de um grupo controle. Em um estudo experimental em ovinos, Lopes et al.[35] compararam o comportamento biológico de heteroenxertos descelularizados por ácido deoxicólico (1%) com homoenxertos criopreservados após 180 dias. Assim como em nosso estudo, os autores evidenciaram que os heteroenxertos descelularizados apresentaram significativo aumento nos seus diâmetros valvares, ao contrário dos homoenxertos criopreservados convencionais, que mantiveram seus diâmetros originais. Cebotari et al.[36] reconstruíram a VSVD de crianças com homoenxertos descelularizados com tripsina e EDTA e semeados "in vitro" com células endoteliais autólogas, e também demonstraram o aumento no diâmetro desses enxertos após três anos de seguimento, com a manutenção da competência valvar e gradientes baixos, sugerindo a remodelação e o crescimento.

Pode-se argumentar que o aumento do diâmetro seja decorrente de dilatação patológica dos enxertos, entretanto, algumas evidências suportam o crescimento real:

1. A análise macroscópica dos enxertos não evidenciou sinais de adelgaçamento da parede do conduto, havendo coaptação normal das cúspides.

2. Os diâmetros valvares aumentaram, aparentemente, de forma proporcional aos ganhos ponderais dos animais.

3. O ecocardiograma não revelou insuficiência valvar significativa.

4. A análise microscópica demonstrou uma recelularização ordenada. Observamos, também, a integridade das fibras colágenas e elásticas, além da organização normal das mesmas.

Pelas colorações de Silvermann-Movat e Russel-Movat, pudemos comprovar a integridade das fibras colágenas e elásticas, respectivamente, em todos os enxertos. Isto nos sugere que o método de descelularização empregado não comprometeu a estrutura da matriz extracelular, e que as células presentes foram capazes de remodelar o enxerto de forma apropriada.

Assim como Steinhoff et al.[24], não observamos calcificação nem no conduto, nem nas cúspides valvares. Estes autores, porém, descrevem calcificações nos tecidos musculares subvalvares, junto à anastomose proximal, em todos os enxertos, já com três meses de pós-operatório. É comum observarmos calcificações nas anastomoses vasculares, mas estes achados podem ser decorrentes de uma descelularização incompleta ou por algum grau de comprometimento estrutural decorrente do processo, uma vez que os autores utilizaram uma enzima (tripsina) como agente descelularizante, já citada por Dohmen et al.[27] como sendo um método inferior por alterar a matriz colágena.

Os ecocardiogramas seriados evidenciaram velocidade de fluxo e gradientes transvalvares baixos e que não aumentaram nos exames seriados. A preservação da mobilidade das cúspides e da função valvar a médio prazo corroboram com a hipótese de viabilidade dos homoenxertos descelularizados.

A estabilidade biomecânica obtida nestes homoenxertos após o processo de descelularização é um ponto crítico para sua segurança cirúrgica e função. A perda de estabilidade tecidual, que pode acompanhar o processo de descelularização, não foi significativa no presente estudo, que usou tecidos de parede delgada, sob a pressão pulmonar e em posição ortotópica. O uso em posição aórtica ou heterotópica pode ser mais crítico, exigindo novos estudos nestas condições.


CONCLUSÕES

Os homoenxertos ovinos descelularizados foram progressivamente repovoados por células do receptor e este repovoamento foi organizado e funcional, não havendo sinais de degeneração e/ou calcificação. Os ecocardiogramas seriados evidenciaram a manutenção da função valvar após 180 dias, com gradientes baixos e insuficiência valvar mínima. Houve aumento no diâmetro destes enxertos, aparentemente acompanhando o crescimento do animal. A organização celular e a preservação da integridade das fibras elásticas e colágenas, evidenciada pela histologia, e a manutenção da boa função valvar, evidenciada pela ecocardiografia, sugerem um excelente comportamento biológico, com remodelamento apropriado.


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Article receive on sexta-feira, 23 de abril de 2010

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