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ARTIGO ESPECIAL

Reflexões sobre a formulação de política de atenção cardiovascular pediátrica no Brasil

Valdester Cavalcante Pinto JúniorI; Lea Carvalho RodriguesII; Cátia Regina MunizIII

DOI: 10.1590/S0102-76382009000100014

INTRODUÇÃO

Até junho de 2004, inexistia no Brasil o reconhecimento da criança e do adolescente cardiopatas como indivíduos, portanto, com características e necessidades singulares. A elaboração de uma portaria ministerial que possibilitasse a atuação específica nesta área é precedida por dificuldades particulares, disputas associativas e regionais, interesses industriais e convencimento do estamento burocrático.

O objetivo deste artigo é discutir a elaboração de políticas de atenção cardiovascular pediátrica e a participação dos vários agentes envolvidos. A utilização de vários autores na discussão visa a fundamentar cada momento.


CONTEXTUALIZAÇÃO DO PROBLEMA

A prevalência de cardiopatias congênitas (CC) está entre sete a dez crianças por 1000 nascidos [1]. Desta forma, com recorte em 9/1000 nascidos, estima-se o surgimento de 28.846 novos casos de cardiopatias congênitas no Brasil por ano. Em torno de 20% dos casos, a cura é espontânea, estando relacionada a defeitos menos complexos e de repercussão hemodinâmica discreta [2].

A necessidade média de cirurgia cardiovascular em congênitos no Brasil é da ordem de 23.077 procedimentos/ano, fazendo parte desta estimativa, além dos novos nascimentos com cardiopatia congênita, os casos de reintervenções. Foram operados, em 2002, 8.092 pacientes, o que evidencia defasagem de 65%, sendo que os maiores índices estão nas regiões Norte e Nordeste (93,5% e 77,4%, respectivamente) e os menores nas regiões Sul e Centro-Oeste (46,4% e 57,4%, respectivamente) [2].

O tratamento precoce das CC evita substancialmente internações sequenciadas por complicações da doença, além de proporcionar melhor qualidade de vida. Sabe-se que 50% dos portadores de CC devem ser operados no primeiro ano de vida. Assim, são necessários 11.539 novos procedimentos/ano no Brasil. Como o setor público absorve 86,1% dos casos, estima-se um deficit de 80,5%. A situação é mais crítica nas regiões Norte e Nordeste, com índices de 97,5% e 92%, respectivamente [2].

A febre reumática, doença com distribuição universal, mas com marcada diferença nas taxas de incidência e prevalência entre os diversos países, constitui a principal causa de cardiopatia adquirida em crianças e adultos jovens nos países em desenvolvimento. Acomete com maior frequência pacientes na faixa etária de cinco a 15 anos. Segundo o modelo epidemiológico da Organização Mundial de Saúde (OMS), e de acordo com o último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), estima-se que anualmente no Brasil ocorram cerca de dez milhões de amigdalites estreptocócicas, perfazendo o total de 30.000 novos casos de febre reumática, dos quais 15.000 evoluem com cardite [3].

Apesar da situação crítica apontada por estes dados, o fato é que, até junho de 2004, a cirurgia cardiovascular pediátrica não estava regulamentada no Brasil.


CIRURGIA CARDIOVASCULAR PEDIÁTRICA - BREVE HISTÓRICO

A primeira correção da persistência de canal arterial com sucesso deu-se em 1938, e foi realizada pelo dr. Robert E. Gross, nos Estados Unidos. A correção cirúrgica da estenose valvar mitral reumática remonta a 20 de maio de 1923, quando Elliot Carr Cutler e Samuel Levine, utilizando-se de um tenótomo, realizaram com sucesso a comissurotomia mitral por via transventricular, em uma paciente de 12 anos de idade, no Peter Bent Brigham Hospital, da Escola Médica de Harvard. A cirurgia cardíaca a céu aberto pode ser considerada um dos mais importantes avanços médicos do século XX. É inegável que este fato se reveste da maior importância, mormente em se considerando que a primeira cirurgia cardíaca a céu aberto, realizada com sucesso, só aconteceu em 1952. Foi realizada quando o dr. F. John Lewis corrigiu uma comunicação interatrial de 2 cm de diâmetro, sob visão direta com interrupção do fluxos nas veias cavas e hipotermia corporal moderada, em uma menina de cinco anos de idade, no Hospital da Universidade de Minnesota (EUA).

No dia 6 de maio de 1945, Joaquim Azarias de Britto realizou a primeira ligadura de canal arterial, no Hospital Souza Aguiar, no Rio de Janeiro. Em novembro de 1948, Arthur Domingues Pinto, em Santos, realizou a primeira cirurgia de Blalock- Taussig no Brasil. Em 24 de junho de 1950, operou o primeiro caso de coarctação da aorta. Em 1951, Euryclides de Jesus Zerbini realizou, no Hospital de Clínicas de São Paulo, a primeira comissurotomia mitral digital. Em 1954, Margutti publicou os primeiros casos de correção de comunicações interatriais. Em 12 de novembro de 1956, Hugo Felipozzi realizou a primeira operação com circulação extracorpórea no Brasil, com a correção de um defeito do septo atrial [4,5].

Desde o primeiro procedimento, até hoje, é aprimorado o diagnóstico, podendo-se atualmente fazê-lo inclusive intraútero; são aperfeiçoadas técnicas cirúrgicas que abordam desde os mais simples defeitos até a substituição do coração; desenvolvidas drogas capazes de conduzir com segurança a anestesia e o pós-operatório; adequadas ou desenvolvidas tecnologias para Pediatria, como respiradores, monitores, órteses, próteses, até coração artificial; e, principalmente, são treinados profissionais multidisciplinares.

São oito décadas de intenso trabalho para dotar a especialidade de condições de oferecer qualidade de vida àqueles submetidos ao tratamento das cardiopatias congênitas.


O RECONHECIMENTO DOS OBSTÁCULOS

Passar-se-á relatar, neste e nos próximos tópicos: a luta em dimensões nacionais, a criação do Departamento de Cirurgia Cardiovascular Pediátrica (DCCVPed) e a formulação da Política Nacional de Atenção Cardiovascular de Alta Complexidade, do primeiro autor vivência no processo.

Durante a década de 1990, em Fortaleza, houve trabalho intenso para a estruturação de um serviço de cirurgia cardiovascular pediátrica que atendesse as demandas então insustentáveis. Mobilização de profissionais da saúde, componentes familiares de cardiopatas e imprensa abriram espaço de debate com a Administração pública, que teve seu ápice em simpósio na sede da Sociedade Cearense de Cardiologia, em 11 de setembro de 1998, contando com a presença de representantes das Secretarias de Saúde, do estado do Ceará e municipal de Fortaleza, diretores de hospitais, representantes do Ministério Público, cardiologistas pediátricos e cirurgiões cardiovasculares, o que tornou viável a efetivação de parte do projeto de implantação do Serviço de Cirurgia Cardiovascular Pediátrica do Hospital de Messejana, em Fortaleza, CE.

Em março de 2000, inauguravam-se as instalações para o setor, com exceção da Unidade de Terapia Intensiva Pediátrica de pós-operatório.

Conflitos políticos, com base em ocupação de espaços dentro do serviço, culminaram com o afastamento de cirurgiões e cardiopediatras, episódios que se repetiram por duas vezes, maio de 2000 e junho de 2001. A insatisfação por não se poder implementar, na sua integralidade, o projeto conquistado, e o não-atendimento à demanda, propulsionaram a implantação de um novo serviço na iniciativa privada.

O então Secretário Estadual de Saúde, Dr. Anastácio Queiroz, demonstrou interesse em ajudar, com a ressalva de não existir recursos disponíveis para levar a termo tal iniciativa. Como proposta oficial, em conseguindo recurso extrateto estadual, ou seja, novo numerário proveniente do Ministério da Saúde (MS), poderia consolidar o acordo. Durante o 29º Congresso Nacional de Cirurgia Cardíaca, realizado em Natal, RN, em abril de 2002, teve-se oportunidade de expor dificuldades ao representante do MS, Dr. Alberto Beltrame, que sinalizou a possibilidade de, caso fosse a atuação nacional, o MS disponibilizaria recursos, em forma de mutirão, prática do então ministro da Saúde, José Serra. Tal iniciativa contou com a empolgação de muitos, no entanto, críticas a este modelo foram imediatas, por não tratar o problema de forma integral. Houve mobilização das sociedades regionais e da Sociedade Brasileira de Cirurgia Cardiovascular (SBCCV), no sentido de elaborar uma lista de cada unidade federada interessada em participar do programa.

No último trimestre daquele ano, foi liberada verba que atendia às demandas apresentadas pela sociedade brasileira. De posse do conquistado e, na esperança do cumprimento do acordo para o credenciamento do serviço, nova reunião foi agendada com o Secretário estadual de saúde, experimentando-se a surpresa de novo obstáculo. Não se poderia fazer uso dos recursos provindos do MS, pois era necessário o serviço estar credenciado e a legislação vigente não permitia credenciamento exclusivo para cirurgia cardiovascular pediátrica. Os recursos foram destinados ao Hospital de Messejana, que não pôde incrementar o atendimento, pois, naquele momento, já se encontrava sem capacidade ociosa, retornando aos cofres federais a quase totalidade da verba. Argumentou-se que havia no Brasil dois serviços credenciados com esta particularidade, restando, assim, demonstrados precedentes, não sendo suficiente para uma atitude em prol das crianças.

Palavras textuais do Secretário Estadual de Saúde: "Se você conseguir mudar a portaria vou ter o maior prazer em credenciar o serviço".


A LUTA EM DIMENSÕES NACIONAIS

Naquele momento, deu-se conta de que o problema não era apenas local, pois tinha dimensões nacionais e que se precisaria discutir a implantação de uma política nacional para atender de forma indiscriminada a criança e o adolescente cardiopatas. Na ocasião, apenas dois serviços realizavam de forma exclusiva cirurgia cardiovascular para criança no Brasil - Hospital Pequeno Príncipe, no Paraná, e Instituto Materno-Infantil - IMIP, em Pernambuco.

Por intermédio da SBCCV, foi marcada reunião na Secretaria de Atenção à Saúde, na intenção de demonstrar a necessidade de elaboração de portaria que atendesse a tal demanda. Houve sensibilização para o problema, porém não se enxergou intenção de resolvê-lo. No final de novembro de 2002, recebeu-se informação da necessidade de aprontar normas para a publicação, ainda na gestão José Serra, da portaria que atenderia especificamente à criança e ao adolescente cardiopatas. Não é difícil a compreensão de que, em razão do tempo exíguo e da atitude tardia do MS, a portaria não seria publicada.

Tomou posse em janeiro de 2003 o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e foi nomeado o Dr. Humberto Costa para ocupar a pasta da Saúde. Retornou-se ao MS para reiniciar as discussões. A proposta da diretora da Secretaria de Atenção à Saúde era de que se precisaria um estudo detalhado de todos os estados brasileiros para que fosse possível implementar uma política nacional. O documento foi preparado e entregue ao MS no início do primeiro semestre de 2003 e o resumo publicado pela Revista Brasileira de Cirurgia Cardiovascular em 2004 [2].


A CRIAÇÃO DO DEPARTAMENTO DE CIRURGIA CARDIOVASCULAR PEDIÁTRICA

Precisava-se, para o diálogo com o MS, de uma instituição específica que advogasse os interesses da cirurgia cardiovascular pediátrica, que naquele momento eram defendidos pelo então presidente da SBCCV, Jarbas Jakson Dinkhuysen, e pelo presidente da Sociedade Norte-Nordeste de Cirurgia Cardiovascular, Valdester Cavalcante Pinto Júnior.

Solicitou-se, em reunião da diretoria da SBCCV, no dia 3 de abril de 2003, durante o 30º Congresso Nacional de Cirurgia Cardíaca, em Goiânia, a criação do DCCVPed, sendo a moção aceita por unanimidade. No dia 4 de abril de 2003, em assembléia geral da SBCCV, em Goiânia, após exposição dos motivos para a instituição do Departamento, foi entregue lista dos sócios, que estatutariamente seriam necessários para sua instituição. Ficou, então, agendada a fundação do Departamento para a próxima assembléia da SBCCV, a qual ocorreria no seguinte Congresso de Cardiologia da Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC). Em 29 de setembro de 2003, durante assembléia extraordinária da SBCCV, realizada no 58º Congresso Brasileiro de Cardiologia, em Salvador, Bahia, foi fundado oficialmente o DCCVPed da SBCCV, após aprovação dos seus estatutos.

A primeira diretoria foi aprovada e composta pelos médicos Valdester Cavalcante Pinto Júnior (presidente), Marcelo Biscegli Jatene (secretário), Fábio Said Sallum (tesoureiro) e Ulisses Alexandre Croti (diretor científico).

Já naquele momento havia insatisfações quanto à criação do DCCVPed, sob a argumentação de que seria uma forma de se criar outra sociedade e assim fragilizar a SBCCV e dificultar o exercício profissional de alguns cirurgiões cardiovasculares. Esses conflitos, certamente, iriam se exacerbar durante o período de elaboração da portaria ministerial.

No curso de todo esse período, o DCCVPed dependeu financeiramente de doações esporádicas da indústria para reuniões de diretoria, ou do custeio por parte dos próprios diretores.


A FORMULAÇÃO DA POLÃ?TICA NACIONAL DE ATENÇÃO CARDIOVASCULAR DE ALTA COMPLEXIDADE

A partir de janeiro de 2003, o MS passou a discutir uma reforma ampla para o atendimento de alta complexidade e promoveu intensa discussão para formular a Política Nacional de Atenção Cardiovascular de Alta Complexidade. Ã? mesa, sociedades de várias especialidades - como SBCCV, Sociedade Brasileira de Cardiologia, Sociedade Brasileira de Radiologia, Sociedade Brasileira de Hemodinâmica e Cardiologia Intervencionista, Sociedade Brasileira de Cirurgia Vascular, Sociedade Brasileira de Arritmia, Departamento de Estimulação Cardíaca Artificial - DECA da SBCCV e o DCCVPed da SBCCV - travaram disputas por locus de atuação médica, espaço de atuação para instituições hospitalares e incorporação de produtos, negociadas pelas sociedades, por interesse das sociedades e/ou indústrias. Do outro lado, as tentativas do MS de centralizar na rede hospitalar universitária o atendimento de alto custo e diminuir o número de hospitais conveniados da rede privada com a elaboração de uma política extremamente excludente pelas inúmeras exigências para as instituições hospitalares no que tange a estrutura física, equipamentos e recursos humanos, sem a devida contrapartida financeira.

A SBCCV, no decurso de todo o processo, sinalizou para elaboração de uma política que atendesse às diferenças regionais e para o fato de que era impossível atender todas as exigências propostas pelo MS, visto que a maioria dos serviços cadastrados em cirurgia cardiovascular estava passando por graves déficits financeiros.

A cirurgia cardiovascular pediátrica transitou por ocasiões difíceis na negociação, primeiro porque o MS queria estabelecê-la como procedimento de alto custo e assim só ser realizada em hospitais universitários ou de ensino, atitude que diminuiria drasticamente o número de procedimentos no País, porquanto esta rede hospitalar, na sua maioria, encontrava-se sucateada. A tentativa era de centralizar no setor público tais ações. A demonstração de que os investimentos por procedimento, em 2002 (hospital, profissionais e indústria) em cirurgia cardiovascular pediátrica montavam a cerca de R$ 6.894,40 [2], de que alguns dispositivos utilizados em procedimentos de outras especialidades chegavam a custar até sete vezes este valor, e de que a rede instalada no setor público não era suficiente para atender a demanda, permitiu superar este obstáculo.

De outra parte, segmentos da SBCCV e do DECA entenderam que a política discutida naquele momento contrariava interesses profissionais e de instituições hospitalares, que deixariam de atuar na sua plenitude, ou seja, eximindo-se de executar todos os procedimentos até então autorizados. Passaram, então, a trabalhar, influenciando membros do Legislativo e de conselhos CONASEMS (Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde) e CONASS (Conselho Nacional de Secretários da Saúde), para bloquear a portaria na sua totalidade.

Em reunião solicitada por membros da SBCCV, em São Paulo, na sede do MS, na presença do Senhor Ministro da Saúde, o DCCVPed foi excluído da convocação, por entenderem que sua presença dificultaria as negociações. Às vésperas, recebeu-se comunicado do então Presidente da SBCCV, Dr. Jarbas Jakson Dinkhuysen, alertando sobre intento da reunião, que era impedir a conclusão da portaria. Participou-se e conseguiu-se do ministro, Dr. Humberto Costa, a manutenção da portaria que privilegiava a cirurgia cardiovascular pediátrica. Naquele mesmo momento, conseguir-se-ia a diminuição das exigências para os serviços de cirurgia cardiovascular.

Na última reunião com técnicos do MS, antes da aprovação do texto, houve a última tentativa de excluir as normas referentes à Pediatria, chegando ao ponto de o diretor da Secretaria de Atenção à Saúde fazer a seguinte pergunta: "então, é para excluir a Pediatria?".

O marco legal veio em 15 de junho de 2004, por meio da Portaria No1169/GM, que instituía a Política Nacional de Atenção Cardiovascular de Alta Complexidade [6] e, com a Portaria No 210 SAS/MS, na mesma data, a cirurgia cardiovascular pediátrica estava regulamentada [7].


A CRIANÇA CARDIOPATA E SEU RECONHECIMENTO COMO SUJEITO DE DIREITOS

O que é ser criança? Como pensam elas, sentem e vivem? Cohn [8], em 2005, alerta para a necessidade de se entender a criança e o seu mundo com base no seu ponto de vista. Assim, afirma categoricamente: "se quisermos realmente responder àquelas questões, precisamos nos desvencilhar das imagens preconcebidas e abordar esse universo e essa realidade, tentando entender o que há neles, e não o que esperamos que nos ofereçam".

Os dicionários registram a palavra infância como o período de crescimento que vai do nascimento até o ingresso na puberdade, por volta dos 12 anos de idade. Segundo a Convenção sobre os Direitos da Criança, aprovada pela Assembléia Geral das Nações Unidas, em novembro de 1989 [9], "crianças são todas as pessoas menores de dezoito anos de idade". Já para o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) (1990) [10], criança é considerada a pessoa até os doze anos incompletos, enquanto entre os doze e dezoito, idade da maioridade civil (18 anos), encontra-se a adolescência.

Etimologicamente, a palavra infância vem do latim, infantia, e refere-se ao indivíduo que ainda não é capaz de falar. Essa incapacidade, atribuída à primeira infância, estende-se até o sétimo ano, que representa a idade da razão. Percebe-se, no entanto, que a idade cronológica não é suficiente para caracterizar a infância. É o que Khulmann [11], em 1998, acentua categoricamente: infância tem um significado genérico e, como qualquer outra fase da vida, esse significado é função das transformações sociais. Toda sociedade tem seus sistemas de classes de idade e a cada uma delas é associado um sistema de status e de papel.

Philippe Ariès [12], famoso historiador francês, assinala em 1978 que a infância foi uma invenção da Modernidade, constituindo-se numa categoria social elaborada recentemente na história da humanidade. Para ele, a emergência do sentimento de infância, como uma consciência da particularidade infantil, decorre de longo decurso histórico, não sendo uma herança natural. Os séculos XVI e XVII esboçam uma concepção de infância centrada na inocência e na fragilidade infantil [12]. O século XVIII inaugurou a formulação da infância moderna, assumindo o signo de liberdade, autonomia e independência [12].

Para Ariès [12], o sentimento de infância data do século XIX. Até então, as crianças eram tratadas como adultos em miniatura ou pequenos adultos. Os cuidados especiais que elas recebiam, quando tal ocorria, eram reservados apenas aos primeiros anos de vida, e aos que eram mais bem localizados social e financeiramente.

Heywood [13], em 2004, faz uma dura crítica aos estudos de Ariès. Para ele, o estudioso foi ingênuo no trato com suas fontes históricas, exageradamente centrado na Idade Média, e muito extremado ao acentuar a inexistência de infância na civilização medieval. Heywood [13] mostra, no seu trabalho, que havia uma infância presente na Idade Média, mesmo que a sociedade não tivesse tempo para a criança. No mesmo passo, apresenta a tese de que a Igreja já se preocupava com a educação de crianças, postas ao serviço do monastério. Já no século XII, assegura esse autor, é possível encontrar indícios de um investimento social e psicológico nas crianças. Nos séculos XVI e XVII, já existia "uma consciência de que as percepções de uma criança eram diferentes das dos adultos" [13].

Assim como a infância, a adolescência é também compreendida hoje como uma categoria histórica, que recebe significações e significados longe de serem essencialistas. É como anota Pitombeira [14]: "a naturalização da adolescência e sua homogeneização só podem ser analisadas à luz da própria sociedade. Assim, as características "naturais" da adolescência apenas são compreensíveis quando inseridas na história que as produziu, mas não foi sempre deste modo que se falou da adolescência".

Para a maior parte dos estudiosos do desenvolvimento humano, ser adolescente é viver um período de mudanças físicas, cognitivas e sociais que, juntas, ajudam a traçar o perfil desta população. Atualmente, fala-se da adolescência como uma fase do desenvolvimento humano que faz uma ponte entre a infância e a idade adulta. Nessa perspectiva de ligação, a adolescência é entendida como período perpassado por crises, que encaminha o jovem na conquista de sua subjetividade. Adolescência, entretanto, não pode ser alcançada somente como uma fase de transição. Na verdade, ela é bem mais do que isso [15].

Adolescência, período da vida humana entre a puberdade e a adultícia, vem do latim adolescentia, adolescer. É comumente associada à puberdade, palavra derivada do latim pubertas-atis, referindo-se ao conjunto de transformações fisiológicas ligadas à maturação sexual, que traduzem a passagem progressiva da infância à adolescência.

Do mesmo modo que acentuou o caráter moderno da infância, Ariès [12] acredita que a adolescência também nasceu sob o signo da Modernidade, a partir do século XX. Quanto a isso, ele se expressa: o primeiro adolescente moderno típico foi Siegried, de Wagner; a música de Siegried, pela primeira vez, exprimiu a mistura de pureza (provisória), de força física, de naturismo, de espontaneidade e de alegria de viver que faria do adolescente o herói do nosso século XX, o século da adolescência.

Somente após a implantação do sentimento de infância, no século XIX, tornou-se possível a emergência da adolescência como uma fase com características peculiares, distintas dos outros momentos do desenvolvimento [12].

A condição básica que favoreceu a "inauguração" da adolescência ocidental do século XX foi, principalmente, a possibilidade de prescindir da ajuda financeira dos jovens que agora podem se dedicar mais tempo à formação profissional. Além disso, a realidade contemporânea e tecnicista exige cada vez maiores aperfeiçoamentos profissionais, levando a um elastecimento do período de preparação dos jovens para o ingresso no mercado de trabalho. Paralelamente, aumenta também o tempo de tutela das crianças pelos pais, uma vez que elas são mantidas mais tempo nas escolas [15].

Embora o início do reconhecimento da infância se localize nos séculos XVI e XVII, houve necessidade de marcos legais, como a Convenção sobre os Direitos da Criança [9], aprovada pela Assembléia Geral das Nações Unidas, em novembro de 1989, e, no Brasil, o ECA [10], em 1990, para o desencadeamento de ações de promoção do bem-estar para este grupo etário. Treze anos após a publicação do ECA, o MS cede lugar em sua agenda à criança e ao adolescente cardiopatas.

A elaboração da Política Nacional de Atenção Cardiovascular Pediátrica passa por um processo inaugurado pela iniciativa individual de resolver uma demanda reprimida, no Estado do Ceará, no atendimento a crianças e adolescentes cardiopatas. A ausência de normas que pudessem incorporar serviços com vocação para o atendimento exclusivo em Pediatria, e assim contribuir para a diminuição das filas de espera por cirurgias, fez desencadear um movimento nacional pelo reconhecimento do setor e implantação de regras que permitissem o pleno exercício da cirurgia cardiovascular em unidades hospitalares que se adequassem às novas regras. Aqui se observa a implementação de um dos conceitos liberais clássicos de Adam Smith da sua obra "Uma investigação sobre a natureza e a causa da riqueza das nações":

"Assim é que os interesses e os sentimentos privados dos indivíduos os induzem a converter seu capital para as aplicações que, em casos ordinários, são as mais vantajosas para a sociedade(...). Sem qualquer intervenção da lei, os interesses e os sentimentos privados das pessoas naturalmente as levam a dividir e distribuir o capital de cada sociedade entre todas as diversas aplicações nela efetuadas, na medida do possível, na proporção mais condizente com o interesse de toda a sociedade" (Smith apud Morais) [16].

Pode-se avaliar a atitude dos gestores da Secretaria de Saúde do Ceará em dois momentos: no primeiro, ante a ausência de um serviço de cirurgia cardiovascular pediátrica no Estado, que respondesse às demandas. Houve tentativa de eximir-se dos investimentos, procurando pressionar a rede conveniada privada a aumentar a frequência de operações, a qual se mostrou desinteressada na manutenção do atendimento na sua plenitude, em razão dos valores praticados por procedimento. Com a obrigação de investir, foram observados lentidão nas ações de execução do projeto, bem como o corte de parte deste. No segundo, quando oferecido aumento da oferta de serviço, por meio de credenciamento de instituição sem fins lucrativos, para atender à demanda, sabendo do ônus do pagamento dos procedimentos a serem contratados, transfere à sociedade civil a responsabilidade de viabilizar econômica e juridicamente a incorporação de mais uma unidade hospitalar para o cuidado da criança e adolescentes cardiopatas.

Diniz [17] ressalta que "um dos fatores responsáveis pelo fraco poder infra-estrutural foi a corrosão da capacidade do Estado de realizar suas funções básicas e intransferíveis, como a garantia da ordem e da segurança pública e ainda de assegurar condições mínimas de existência para amplas parcelas da população, localizadas nas faixas mais pobres. Sob o impacto das crises fiscal e política, e como resultado da primeira onda de reformas liberais inspiradas nos cortes de gastos e de pessoal, aprofundou-se de forma expressiva a incapacidade histórica do Estado penetrar no conjunto do território nacional e de incluir, em seu raio de ação, os diferentes segmentos da sociedade, garantindo de forma universal o acesso aos serviços públicos essenciais, nas áreas de saúde, educação e saneamento básico, bem como a eficácia de seus ordenamentos legais".

A criação do DCCVPed tornou mais visível a cirurgia cardiovascular pediátrica, estimulando vários cirurgiões a ingressar ou a retornar a esta área. Possibilitou, também, identidade e especificidade nas discussões dentro da própria SBCCV e junto a órgãos públicos, notadamente ao MS.

Durante as negociações para elaboração da portaria ministerial de atenção cardiovascular de alta complexidade, o MS tentou centralizar nos hospitais universitários os procedimentos de alto custo. Uma intervenção forte por parte dos hospitais, que visualizaram a exclusão deste tipo de atendimento, ainda rentável, fez o MS incorporar os hospitais de ensino no rol das instituições com direito de intervir neste segmento. O DCCVPed conseguiu demonstrar que os custos com os procedimentos não se adequavam ao conceito de alto custo proposto pelo MS, possibilitando a todas as unidades credenciadas atuarem de forma plena. Outra argumentação levada à discussão foi o sucateamento dos hospitais universitários, juntamente à incapacidade do Estado de viabilizar a estruturação de serviços capazes de atender à demanda. Polignano [18] ratifica em artigo tal situação:

"Os Hospitais Universitários, último reduto da assistência médica hospitalar de excelência em nível do SUS, também entram em crise. Em 1997, os Hospitais Universitários do país "são forçados" a reduzir o número de atendimentos, e induzidos pelo próprio governo à privatização como solução para resolver a crise financeira do setor. O motivo da crise foi o baixo valor pago pelos serviços prestados pelos hospitais conveniados ao SUS e a demora na liberação desses recursos. As dívidas dos hospitais universitários ultrapassaram a quantia de 100 milhões de reais (Abril / 1997). Muitos deles operavam com a metade do número de funcionários necessários ao seu funcionamento".

O MS, ao publicar a regulamentação para implantar os serviços de cirurgia cardiovascular e disponibilizar recursos para o credenciamento de novas instituições, sinaliza querer envolver-se na resolução das demandas até então observadas no País, contudo, durante todo o processo, questões como adequação dos valores praticados para remunerar hospitais, profissionais e indústrias foram sistematicamente excluídas da pauta de negociações.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Destaca-se a importância da participação da sociedade civil na elaboração de políticas públicas sociais, sendo imperativa, para o aprofundamento das questões na área social, a intervenção de agentes que vivenciam as dificuldades, seja como portadores das doenças, seja como componentes familiares, seja como profissionais da área. A busca é pela plena democratização na elaboração das políticas e que os agentes não pertencentes ao Poder Público não sejam usados apenas para legitimar a vontade da classe dominante.

Entende-se que a não-observação, por parte do MS, das diferenças regionais, ao publicar normas-padrão para todos, e a não-remuneração adequada por procedimento, devem dificultar a ampliação no atendimento.

Apenas com o aprofundamento da análise dos resultados dos quatro anos de implementação das normas é que se poderá definir com clareza os erros e acertos desta política.


REFERÊNCIAS

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2. Pinto Júnior VC, Daher CV, Sallum FS, Jatene MB, Croti UA. Situação das cirurgias cardíacas congênitas no Brasil. Rev Bras Cir Cardiovasc. 2004;19(2):III-IV. Visualizar artigo

3. Mota CCC, Muller RE. Febre reumática. In: Croti UA, Mattos SS, Pinto Jr. VC, Aiello VD, eds. Cardiologia e cirurgia cardiovascular pediátrica. São Paulo: Roca; 2008. p.593-604.

4. Braile DM, Godoy MF. História da cirurgia cardíaca. Arq Bras Cardiol. 1996;66(6):329-37. [MedLine]

5. Prates PR. Pequena história da cirurgia cardíaca: e tudo aconteceu diante de nossos olhos... Rev Bras Cir Cardiovasc. 1999;14(3):177-84. Visualizar artigo

6. Brasil. Política Nacional de Atenção Cardiovascular de Alta Complexidade. Portaria N?1169/GM. Diário Oficial n.115 de 17 de junho de 2004, seção 1, p. 57.

7. Brasil. Serviços de Cirurgia Cardiovascular Pediátrica. Portaria N?210 SAS/MS de 15 de junho de 2004. Diário Oficial n.117 de 21 de junho de 2004, seção 1, p. 43.

8. Cohn C. Antropologia da criança. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; 2005.

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10. Brasil. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei 8069 de 13 de julho de 1990.

11. Khulmann Jr. M. Infância e educação infantil: uma abordagem histórica. Porto Alegre: Mediação; 1998.

12. Ariès P. A história social da criança e da família. Rio de Janeiro: Guanabara; 1978.

13. Heywood C. Uma história da infância. Porto Alegre: Artmed; 2004.

14. Pitombeira D. Adolescentes em processo de exclusão social: uma reflexão sobre a construção de seus projetos de vida [Dissertação de Mestrado]. Fortaleza: Faculdade de Psicologia, Universidade Federal do Ceará; 2005. 285p.

15. Frota AMMC. Diferentes concepções da infância e adolescência: a importância da historicidade para sua construção. Estudos e Pesquisas em Psicologia, EFRJ, RJ, Ano 7, N. 1, 1º semestre de 2007.

16. Morais RCC. Liberalismo e neoliberalismo: uma introdução comparativa. Primeira Versão n. 73. Campinas: IFCH Unicamp; 1997. [Item 1, p.1-15].

17. Diniz E. O pós-Consenso de Washington: globalização, Estado e governabilidade reexaminados. In: Globalização, Estado e desenvolvimento: dilemas do Brasil no nono milênio. 1ª ed. Rio de Janeiro: FGV; 2007. 336p.

18. Polignano MV. História das Políticas de Saúde no Brasil. http://internatorural.medicina.ufmg.br/saude_no_brasil.pdf

Article receive on quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

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