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RELATO DE CASO

Retransplante cardíaco em criança sem o uso de hemoderivados

Antonio Alceu dos SantosI; José Pedro da SilvaII; Luciana da FonsecaIII; José Francisco BaumgratzIV

DOI: 10.5935/1678-9741.20120051

RESUMO

Este artigo relata um caso de retransplante cardíaco sem o uso de hemoderivados, em uma criança de 6 anos, com miocardiopatia dilatada grave, após rejeição crônica do enxerto e refratária ao tratamento clínico. Para evitar transfusão sanguínea nessa cirurgia, foi realizado planejamento multidisciplinar, que envolveu o uso de eritropoietina no pré-operatório, hemodiluição normovolêmica aguda e recuperação de sangue autólogo no intraoperatório (cell saver), bem como hemostasia meticulosa e redução de flebotomias no pós-operatório.

ABSTRACT

This article reports a case of a cardiac retransplantation without the use of blood products, in a 6 year old child, with severe dilated cardiomyopathy after chronic graft rejection and refractory to clinical treatment. To avoid a blood transfusion in this surgery a multidisciplinary approach was planned, which involved the use of preoperative erythropoietin, acute normovolemic hemodilution and intraoperative cell savage with autologous blood recovery system, as well as a meticulous hemostasis and reduced postoperative phlebotomy.

ABREVIAÇÕES E ACRÔNIMOS

CEC: Circulação Extracorpórea

CSBC: Congresso da Sociedade Brasileira de Cardiologia

HNA: Hemodiluição Normovolêmica Aguda

NYHA: New York Heart Association

rHuEPO: eritropoietina recombinante humana

SHCE: Síndrome de Hipoplasia do Coração Esquerdo

INTRODUÇÃO

A Medicina é uma das muitas áreas do conhecimento ligada à manutenção e à restauração da saúde. Ela trabalha, num sentido amplo, com a prevenção e cura das doenças humanas e animais num contexto médico. Isso ficou bem evidente em 1967, quando se realizou o primeiro transplante cardíaco entre humanos, por Barnard [1]. Nesse mesmo ano, Kantrowitz et al. [2] tentaram, sem sucesso, o primeiro transplante em recém-nato portador de anomalia de Ebstein. Somente em 1984, após a introdução da ciclosporina no manuseio de rejeição, que Bailey et al. [3] realizaram o primeiro transplante em criança portadora de síndrome de hipoplasia de coração esquerdo (SHCE).

Em crianças com miocardiopatia grave, refratária ao tratamento clínico, como no caso de miocárdio não compactado [4], ou com choque cardiogênico [5], o transplante cardíaco se impõe como medida salvadora. O primeiro transplante cardíaco em adulto sem uso de transfusão de sangue ocorreu em 1985 [6]. No Congresso da Sociedade Brasileira de Cardiologia (CSBC), de 2009, foi relatado um transplante cardíaco em uma criança de 2 anos e 9 meses, sem o uso de hemoderivados [7]. Transplante cardíaco neonatal e infantil tem possibilitado sobrevida e melhora da qualidade de vida em crianças com grave disfunção miocárdica [8]. A falência do enxerto ocorre em aproximadamente 7% dos transplantes de coração em crianças [9]; nesses casos, o retransplante se torna a única opção terapêutica. Estratégias bem definidas têm possibilitado reduzir o uso de hemocomponentes em cirurgias cardíacas [10,11]. O tratamento mediante o retransplante cardíaco, em especial para os pacientes pediátricos, é o que apresenta menores perspectivas de obtenção de órgãos em tempo hábil, especialmente pelo menor peso e pela menor disponibilidade de doadores compatíveis. Recentemente, descobrimos, após pesquisa na literatura nacional e internacional, que ainda não havia sido descritos casos de retransplante em criança sem o uso de transfusão de sangue. Sendo assim, relatamos um caso de um retransplante cardíaco, em uma criança de 6 anos, sem uso de hemoderivados.

O trabalho foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital Beneficência Portuguesa de São Paulo (São Paulo, SP, Brasil).

 

RELATO DE CASO

Uma criança, do sexo feminino, com diagnóstico ao nascimento de SHCE, foi submetida, inicialmente, ao primeiro (4/11/2003) e segundo (19/3/2004) estágio da correção pelo protocolo de Norwood. Após 2 anos e 4 meses, evoluiu com disfunção miocárdica grave, sendo necessário transplante cardíaco, realizado em 29/7/2006, sem o uso de hemocomponentes [7].

A criança apresentou boa evolução até 2009, quando novamente foi internada no Hospital Beneficência Portuguesa de São Paulo, com 6 anos, peso e superfície corpórea de 16,6 kg e 0,69 m2, respectivamente, com diagnóstico de insuficiência cardíaca congestiva em classe funcional IV de acordo com a New York Heart Association (NYHA), além de taquicardia ventricular por rejeição crônica grave, refratária ao tratamento imunossupressor (ciclosporina, micofenonalato, metilprednisolona), bem como ao uso de drogas vasoativas (dobutamina, milrinona, noradrenalina), evoluindo com deterioração clínica rápida, chegando ao choque cardiogênico, com necessidade de ventilação mecânica. O ecocardiograma transtorácico revelou função ventricular esquerda deprimida em grau importante, com delta D de 16%. Em decorrência dessa grande instabilidade hemodinâmica, sem resposta ao tratamento medicamentoso, foi indicado novo transplante cardíaco.

Por motivos religiosos, os pais solicitaram que a equipe aplicasse nesse caso o protocolo de gerenciamento e conservação do sangue para cirurgias cardíacas graves e complexas, criado pela equipe especialmente para cirurgias em adultos, mas em alguns casos também em crianças, conforme apresentado no CSBC, em 2011 [12]. Com uma conduta mais restritiva para transfusão de sangue [13], essa cirurgia foi aceita.

No pré-operatório, a criança evidenciava níveis normais de hemoglobina (13,0 g/dl), hematócrito (38 mL/dL) e plaquetas (146 mil/mm3), mesmo assim, iniciamos prontamente o tratamento com eritropoietina recombinante humana (rHuEPO 600 UI/kg/semana), sulfato ferroso (10 mg/kg/dia), ácido fólico (5 mg/dia) e cianocobalamina (vitamina B12 5.000 UI/dia), visto que o resultado ótimo desse estímulo eritrocitário ocorre mais tardiamente, após a primeira semana [14].

Com um planejamento de toda a equipe (cirurgião, clínico, anestesiologista e médicos de terapia intensiva), foi realizado o retransplante cardíaco ortotópico, em 13/12/2009, com sucesso e sem administração de hemocomponentes. O tempo total de isquemia foi 180 minutos. Para a cirurgia, usamos minicircuito (mini-CEC) sem albumina humana no priming, anestesia hipotensiva controlada, normotermia, hemodiluição normovolêmica aguda (HNA) e, fundamentalmente, a recuperação intraoperatória de células (cell saver), bem como hemostasia meticulosa.

No pós-operatório, a criança foi mantida normotensa e em normotermia e também minimizadas as flebotomias. Foram reintroduzidos rHuEPO, ferro, folato e vitamina B12, além do início dos imunosupressores. A dose de ciclosporina foi controlada de acordo com seu nível sérico, por meio do método de radioimunoensaio, mantendo-se o nível entre 300 a 400 ng/mL. A dose do micofenolato de sódio foi de 11,2 mg/kg/dia. O nível mais baixo de hemoglobina após a cirurgia foi de 9,7 g/dl. A alta hospitalar foi 40 dias após o transplante e com níveis normais de hemoglobina (Figura 1).

 

 

Desde o retransplante até essa data, a criança encontra-se em excelente estado geral, com função cardíaca biventricular normal ao ecodopplercardiograma (Figura 2), sem nenhum sinal de rejeição, bem como ausência de toxicidade pelos imunossupressores.

 

 

DISCUSSÃO

Desde o primeiro caso de retransplante relatado em 1977 [15], a experiência com esse procedimento ainda é limitada, principalmente em criança. Vasculopatia e rejeição aguda ou crônica do enxerto representam as principais indicações [16]. Em 1964, foi realizada a primeira cirurgia cardíaca no mundo sem transfusão de sangue [17], e desde então vários outros casos semelhantes têm sido descrito na literatura [18]. Embora alguns trabalhos demonstrem, inicialmente, que cirurgias com grandes hemorragias não tratadas com hemocomponentes aumentam o risco de morte [19], o que, realmente tem sido observado, na última década, são vários estudos demonstrando aumento na morbidade [20], e, fundamentalmente, aumento na mortalidade relacionada à prática de transfusões de sangue [21, 22]. Outro problema de extensão mundial é a escassez de sangue, suscitando grande preocupação. Em uma situação de demanda crescente por sangue e hemoderivados, com tendência estacionária das doações, acentua-se a insuficiência dos estoques em vários países [23]. No Brasil, a demanda de sangue cresce 1% ao ano, enquanto as expectativas de crescimento das doações de sangue variam de 0,5% a 0,7% ao ano [24]. Tudo isso tem contribuído para a classe médica procurar opções terapêuticas [11] e estratégias mais restritivas [25] para evitar ou minimizar as hemotransfusões.

Temos na literatura vários protocolos para realização de cirurgias cardíacas pediátricas isentas de transfusões de sangue homólogo, primeiramente, podemos citar o proposto po Gomez et al. [26], que enumeraram várias estratégias no pré, intra e pós-operatório. Em 2008, outros autores corroboraram a eficácia e segurança desses programas [27]. Outro protocolo considera a pré-doação de sangue autólogo associada à administração de eritropoietina [28].

De modo semelhante, desde 2002, também desenvolvemos um programa de gerenciamento e conservação do sangue homólogo para cirurgia cardíaca, que se resume basicamente em aumentar a massa eritrocitária (ferro, folato e rHuEPO) [29, 30], bem como a HNA, a recuperação intraoperatória de células [27] e, fundamentalmente, a técnica cirúrgica com meticulosa hemostasia. Graças a esse programa, várias transfusões de sangue têm sido reduzidas, ou até mesmo evitadas, em especial neste caso de retransplante.

 

CONCLUSÃO

Foi possível realizar um retransplante cardíaco sem o uso de sangue homólogo, em uma criança com miocardiopatia dilatada grave, após rejeição crônica do enxerto e irreversível à terapêutica medicamentosa, utilizando um programa de gerenciamento e conservação de sangue, além de rigoroso planejamento multidisciplinar. Transfusões de sangue podem ser evitadas ou reduzidas quando se tem o propósito de conservar o sangue autólogo.

REFERÊNCIAS

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Article receive on domingo, 22 de janeiro de 2012

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