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RELATO DE CASO

Lesão bilateral dos óstios coronários na sífilis cardiovascular: relato de caso

Mauricio de Nassau MachadoI; Percival F. TRINDADEII; Rafael Carlos MIRANDAIII; Lilia Nigro MaiaIV

DOI: 10.1590/S0102-76382008000100022

INTRODUÇÃO

A sífilis é uma doença infecciosa transmitida principalmente por via sexual e que pode ter diversas apresentações clínicas em suas várias fases [1]. Aortite sifilítica e, principalmente, lesão dos óstios coronários com leito distal normal são apresentações raramente vistas atualmente [2], sendo também incomum lesões ostiais levarem a infarto agudo do miocárdio [3]. Apesar da sífilis cardiovascular não ser uma condição freqüente, ela deve ser considerada nos casos de lesões ostiais isoladas.

Relatamos o caso de um paciente do sexo masculino, 46 anos, sem fatores de risco para doença arterial coronária aterosclerótica, admitido por edema agudo do pulmão e provável cardiopatia isquêmica. Angiografia coronária mostrou lesão ostial de 90% na artéria coronária esquerda e oclusão do óstio da artéria coronária direita. FTA-abs foi reagente e os títulos de VDRL foram de 1/128. O paciente foi submetido à revascularização do miocárdio e recebeu alta após tratamento antibiótico com penicilina cristalina.


RELATO DO CASO

Homem de 46 anos, atendido com quadro de dispnéia rapidamente progressiva iniciada em repouso e associada a sudorese fria e chiado no peito. Ex-tabagista, negou outros antecedentes pessoais patológicos.

No exame físico de admissão, apresentava pressão arterial de 130/70 mmHg, freqüência cardíaca de 143 bpm, freqüência respiratória de 29 irpm, com saturação de oxigênio pela oximetria de pulso de 74% e ausculta pulmonar com crepitações em todos os campos pulmonares.

O eletrocardiograma mostrou distúrbio de condução pelo ramo esquerdo, que foi presumido ser recente e o edema agudo pulmonar (EAP) foi considerado como secundário à cardiopatia isquêmica, sendo o paciente submetido a terapia fibrinolítica com estreptoquinase três horas após o início dos sintomas, com reversão do quadro pulmonar e estabilização clínica.

Os exames laboratoriais de admissão mostraram elevação da troponina T (2,030 ng/mL - VR < 0,01 ng/mL), CK-MB (61 UI/L - VR < 25 UI/L) e proteína C reativa (2,55 mg/mL - VR < 0,5 mg/mL). O ecocardiograma bidimensional mostrou acinesia dos segmentos médio e basal da parede anterior e hipocinesia dos segmentos médio e basal da parede ântero-septal. A função sistólica global do VE, avaliada pelo índice de contratilidade segmentar da ASE (American Society of Echocardiography), mostrou escore de 1,23. O mapeamento do fluxo em cores identificou refluxos aórtico e mitral discretos.

A angiografia coronária mostrou lesão de 90% no óstio da artéria coronária esquerda e oclusão do óstio da artéria coronária direita, sem lesões no leito coronário distal (Figura 1).


Fig. 1 - Angiografia coronária e aortografia. Angiografia mostrando oclusão completa do óstio da artéria coronária direita (A) e lesão ostial no tronco da artéria coronária esquerda (B)



O paciente negou doenças sexualmente transmissíveis de que tivesse tido conhecimento ou feito tratamento específico. O VDRL foi reagente em títulos de 1/128 e o FTA-abs foi reagente. As sorologias para fator reumatóide, fator antinúcleo, hepatite B e C e HIV foram não-reagentes. O exame do líquor mostrou VDRL, hemaglutinação e imunofluorecência indireta não reagentes.

Iniciado tratamento com penicilina cristalina IV na dose de 24 milhões de UI por dia e não houve exacerbação das lesões. O paciente foi submetido a cirurgia de revascularização do miocárdio com suporte circulatório com balão intra-aórtico com implante da artéria torácica interna esquerda para artéria descendente anterior e enxerto de safena para artérias primeira marginal esquerda e artéria coronária direita sem intercorrências cirúrgicas.

O estudo anatomopatológico de fragmento de aorta retirado no ato cirúrgico mostrou reação inflamatória com infiltrado linfocitário peri-vascular (vasa vasorum), compatível com aortite sifilítica (Figura 2).


Fig. 2 - Estudo histopatológico da camada média da aorta. Camada média da aorta com infiltrado inflamatório com plasmócitos (seta superior direita) e linfócitos com arteríola com reatividade endotelial (seta inferior esquerda). [Hematoxilina & Eosina, x400]



Ecocardiograma não mostrou alterações em relação ao exame pré-operatório. Recebeu alta hospitalar após 21 dias de tratamento com penicilina cristalina intravenosa, assintomático do ponto de vista cardiovascular e com boa evolução da ferida operatória.


DISCUSSÃO

No caso relatado, a presença de lesão ostial à angiografia coronária levantou a suspeita de aortite em um paciente sem fatores de risco para doença coronária aterosclerótica. Apesar de não haver uma história prévia de doença sexualmente transmissível, o diagnóstico de aortite sifilítica com comprometimento ostial coronário foi feito pela presença de altos títulos de VRDL e FTA-abs positivo, além de achados angiográficos e histopatológicos compatíveis com a doença.

A sífilis é uma doença infecciosa que se desenvolve em estágios seqüenciais, podendo permanecer latente por vários anos e, na sua forma terciária, pode acometer o sistema cardiovascular e neurológico [1]. Em aproximadamente 30% dos pacientes não tratados, a sífilis terciária se manifesta entre 10 a 30 anos após a infecção primária [4].

Há quatro categorias de doença cardiovascular sifilítica: 1 - aortite sifilítica não complicada, 2 - aneurisma aórtico sifilítico, 3 - valvulite aórtica sifilítica com regurgitação aórtica e, 4 - estenose sifilítica de óstio coronário [5].

Em uma análise de 2105 angiografias de pacientes com doença arterial coronária, Thompson [6] encontrou incidência de 0,14% de lesões ostiais bilaterais, sem doença no leito coronário distal, todas em mulheres com VDRL não reagentes.

Na fase terciária da sífilis, a aorta é afetada em cerca de 50% dos casos, sendo a formação de aneurismas saculares e o estreitamento ostial coronário as manifestações clínicas mais comuns da aortite sifilítica [7].

Apesar da aortite sifilítica e dos aneurismas micóticos representarem a maioria das desordens inflamatórias da aorta nos relatos de autópsias [5], eles têm sido relativamente incomuns nas séries de patologia cirúrgica. Em estudo de Homme et al. [2], realizado em 513 pacientes consecutivos submetidos a ressecção cirúrgica da aorta ascendente, macroscopicamente, arterite foi encontrada em 6,4% dos pacientes e achados microscópicos compatíveis com aortite em 11,1%. Em nenhum dos casos foi diagnosticada aortite sifilítica.

Lesão ostial coronária pode ser vista em até 26% dos pacientes com aortite sifilítica, mas é incomum que lesões ostiais levem a infarto agudo do miocárdio [3,8,9]. Pacientes com lesão coronária ostial bilateral sem doença arterial coronária distal e aqueles com aneurismas de aorta ascendente devem ser triados para sífilis. Apesar de baixa associação com sífilis cardiovascular, exame do líquor deve ser realizado para se afastar neurosífilis e pesquisa de outras doenças sexualmente transmissíveis, incluindo HIV, também devem ser consideradas [10].

Apesar de pouco freqüente, a aortite sifilítica deve ser suspeitada e pesquisada em pacientes com lesões de óstio coronário.


REFERÊNCIAS

1. Clark EG, Danbolt N. The Oslo study of the natural history of untreated syphilis; an epidemiologic investigation based on a restudy of the Boeck-Bruusgaard material; a review and appraisal. J Chronic Dis. 1955;2(3):311-44. [MedLine]

2. Homme JL, Aubry MC, Edwards WD, Bagniewski SM, Shane-Pankratz V, Kral CA, et al. Surgical pathology of the ascending aorta: a clinicopathologic study of 513 cases. Am J Surg Pathol. 2006;30(9):1159-68. [MedLine]

3. Kennedy JL, Barnard JJ, Prahlow JA. Syphilitic coronary artery ostial stenosis resulting in acute myocardial infarction and death. Cardiology. 2006;105(1):25-9. [MedLine]

4. Rockwell DH, Yobs AR, Moore Jr MB. The Tuskegee study of untreated syphilis: the 30th year of observation. Arch Intern Med. 1964;114:792-8. [MedLine]

5. Heggtveit HA. Syphilitic aortitis. A clinicopathologic autopsy study of 100 cases, 1950 to 1960. Circulation 1964;29:346-55. [MedLine]

6. Thompson R. Isolated coronary ostial stenosis in women. J Am Coll Cardiol. 1986;7(5):997-1003. [MedLine]

7. Corso RB, Kraychete N, Nardeli S, Moitinho R, Ourives C, Barbosa PJ, et al. Aneurisma luético de arco aórtico roto, complicado pela oclusão de vasos braquiocefálicos e acidente vascular encefálico isquêmico: relato de caso tratado cirurgicamente. Rev Bras Cir Cardiovasc. 2002;17(2):63-9.

8. Ferrari AH, Miyagui T, Praxedes IK, Soares WT. Luetic ostial mesoaortitis and myocardial infarction. A case report. Arq Bras Cardiol. 1986;46(6):421-4. [MedLine]

9. Carneiro RC, Lion MF, Oliveira PR, San Juan S. Syphilitic coronary ostial obstruction. Arq Bras Cardiol. 1976;29(3):235-9. [MedLine]

10. Tong SY, Haqqani H, Street AC. A pox on the heart: five cases of cardiovascular syphilis. Med J Aust. 2006;184(5):241-3. [MedLine]

Article receive on segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

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