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EXPERIÊNCIA DO SERVIÇO

Fatores de risco no desenvolvimento de insuficiência renal aguda após cirurgia de revascularização miocárdica com CEC

José Carlos Dorsa Vieira PontesI; Guilherme Viotto Rodrigues da SilvaII; Ricardo Adala BenfattiIII; Natália Pereira MachadoIV; Renato PontelliIV; Elenir Rose Jardim Cury PontesV

DOI: 10.1590/S0102-76382007000400016

INTRODUÇÃO

As revascularizações do miocárdio são realizadas, muitas vezes, com o auxílio de circulação extracorpórea (CEC) e hipotermia sistêmica leve a moderada. Entretanto, existem complicações pós-operatórias decorrentes dessa terapia, entre elas a insuficiência renal aguda (IRA), que tem sido causa de alta morbidade e mortalidade [1-22]. O aumento da incidência de lesão renal tem sido relacionado a vários fatores, sendo os mais importantes a utilização e o tempo de CEC, idade, função renal pré-operatória, uso de drogas inotrópicas, uso de furosemide intra-operátorio e comorbidades associadas, como diabetes, insuficiência cardíaca e doença vascular periférica, entre outras [2-14].

A natureza do impacto da cirurgia cardíaca na função renal não é completamente esclarecida, tendo como um dos fatores de risco o uso da CEC. Entre as conseqüências desse método provavelmente envolvidas na fisiopatologia da IRA podemos citar: fluxo sanguíneo renal não pulsátil, aumento das catecolaminas e mediadores inflamatórios circulantes (IL-1, IL-6, IL-8), insultos micro e macroembólicos aos rins, distúrbios eletrolíticos (hipomagnesemia) e o aumento da hemoglobina livre decorrente de hemólise [5,18-20]. Entretanto, alguns autores desconsideram os efeitos adversos da CEC, atribuindo os danos renais à redução do fluxo sanguíneo e ao aumento da resistência vascular renais, alterações hemodinâmicas decorrentes da própria cirurgia [2].

Em virtude do envelhecimento da população brasileira e necessidade dos pacientes cada vez mais serem submetidos a cirurgias de revascularização miocárdica, é de suma importância identificar os fatores de risco relacionados com uma das mais importantes complicações pós-operatórias decorrentes de tal procedimento terapêutico, a insuficiência renal aguda.

Após revisão da literatura disponível, observou-se uma incidência de 0,7% a 31% [2-14] de IRA pós-revascularização miocárdica com circulação extracorpórea e necessidade de terapia dialítica de 0,9% a 4,9% [5,11,12]. Estes pacientes tiveram taxas de mortalidade de 1,3 a 90% [2-14].

Não há atualmente consenso sobre os fatores mais preponderantes associados à IRA pós-cirúrgica, tornando difícil uma estratificação de risco para o seu desenvolvimento. Vale ressaltar que a comparação entre os trabalhos é, de certa forma, difícil em decorrência dos vários critérios de classificação entre função renal normal e IRA utilizados nos mesmos.

Considerando-se os dados atualmente existentes na literatura pertinente e a carência de trabalhos nacionais a respeito do tema abordado, foi proposto este estudo, na tentativa de reconhecer os fatores de risco dos pacientes predispostos a tal complicação, para melhor assistência aos mesmos nos períodos pré, intra e pós-operatórios.


OBJETIVO

Avaliar a incidência, mortalidade e fatores de risco associados à IRA no pós-operatório da cirurgia de revascularização do miocárdio com CEC, nos pacientes atendidos no serviço de Cirurgia Cardiovascular do Hospital Universitário da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, no período de janeiro de 2002 a novembro de 2004.


MÉTODOS

Foram analisados, retrospectivamente, os prontuários médicos de 103 pacientes, sendo que 74 deles atenderam aos critérios de inclusão: pacientes submetidos à cirurgia de revascularização do miocárdio com o uso de circulação extracorpórea. Estes pacientes foram operados pela mesma equipe de cirurgiões, perfusionistas e anestesiologistas, de forma consecutiva, durante o período citado.

Os critérios de exclusão foram: óbito nas primeiras 24h após cirurgia, reoperação de possíveis complicações cirúrgicas, ter creatinina sérica pré-operatória > 3,0 mg/dl e ter resultados de exames incompletos, impossibilitando a definição de insuficiência renal aguda. Os pacientes foram acompanhados no pós-operatório por cinco dias ou durante o período de internação na unidade de tratamento intensivo.

Os dados pesquisados correspondentes ao período pré-operatório incluíram: idade, sexo, índice de massa corpórea (IMC), número de artérias coronárias acometidas, valores de creatinina sérica e comorbidades como diabetes mellitus, hipertensão arterial crônica, insuficiência cardíaca congestiva, insuficiência arterial periférica e episódio prévio de acidente vascular encefálico, angina ou infarto agudo do miocárdio. No intra-operatório, avaliou-se o tempo de duração da CEC.

Após esternotomia mediana longitudinal padrão, em todos os pacientes, a CEC foi instalada com canulação da aorta ascendente e drenagem venosa através de canulação única (duplo estágio), após heparinização sistêmica com 4mg/kg, repetida de acordo com o TCA (tempo de coagulação ativado), com o objetivo de mantê-lo acima de 450 segundos. As perfusões foram realizadas em hipotermia leve (32°C), com pinçamento aórtico intermitente. Todo o material artificial descartável empregado na CEC não possuía revestimento de heparina (circuito não heparinizado). A neutralização da heparina foi realizada, em todos os casos, com infusão de sulfato de protamina na dose de 1:1, diluída em soro glicosado 5%. Foram utilizados bomba de rolete na linha arterial e oxigenadores de membranas de fibras ocas com filtro de linha arterial (Braile Biomédica - São José do Rio Preto - SP) e com perfusato de 1500 ml aproximadamente.

Referentes ao período pós-operatório constam os níveis de creatinina sérica, pressão venosa central, pressão arterial média, débito urinário, necessidade de diálise, tempo de permanência na unidade de terapia intensiva e tempo de internação hospitalar.

Como critério diagnóstico de IRA, considerou-se: para pacientes com níveis de creatinina sérica pré-operatória £ 1,2 mg/dl, aumento até valores ³ 1,8 mg/dl; elevação de creatinina sérica > 0,5 mg/dl para aqueles com creatinina sérica pré-operatória > 1,2 mg/dl e £ 2,0 mg/dl; ou elevação de 1,0 mg/dl nos pacientes com creatinina pré-operatória > 2,0 mg/dl [11].

Podem-se considerar limitações deste estudo o fato de ser retrospectivo; de conter uma amostra significativa, porém menor em relação aos trabalhos abordados e de utilizar a creatinina plasmática como preditor de disfunção renal, sendo o clearance da creatinina mais sensível para tal diagnóstico [21].

Os pacientes foram divididos em dois grupos: grupo I - que evoluiu com IRA, e grupo II - que evoluiu sem IRA.

Para comparação das variáveis categóricas entre os grupos que desenvolveram e os que não desenvolveram IRA no pós-operatório, utilizou-se o teste do qui-quadrado, teste qui-quadrado corrigido por Yates (tabelas 2x2) ou teste exato de Fisher. A análise das variáveis quantitativas foi realizada pela comparação entre médias (com checagem prévia da normalidade das distribuições), utilizando o teste t, Mann Whitney ou Kruskal Wallis. Foram selecionadas para realização de regressão logística múltipla, as variáveis que apresentaram p < 0,15 (IMC, tempo de internação, uso de drogas inotrópicas ou vasoconstritoras no pós-operatório e tempo de CEC). Para análise da relação entre o tempo de circulação extracorpórea e a creatinina sérica pós-cirúrgica, foi realizada regressão linear simples. Para tanto, utilizou-se o Epi Info versão 3.3.2 e o Bio Estat versão 4.0.


RESULTADOS

Entre os pacientes analisados, encontram-se 51 (68,9%) homens e 23 (31,1%) mulheres, cuja idade média foi 61,82 anos (DP ± 9,86). A idade média dos pacientes que apresentaram IRA foi de 63±11 anos e a dos que não apresentaram foi de 61±9 anos, não havendo diferença estatisticamente significativa (p=0,4591). O IMC médio dos pacientes do grupo I foi de 275 25 kg/m2 e o do grupo II foi de 25±4 kg/m2, havendo diferença estatisticamente significativa (p=0,0191). A incidência de IRA foi de 24,32% (18 pacientes), dentre os quais 5,56% (um paciente) necessitaram de diálise, correspondendo a 1,35% do total de pacientes avaliados. A mortalidade por IRA foi de 5,56% (um paciente), sendo este o mesmo que necessitou de terapia dialítica. As características gerais dos pacientes encontram-se na Tabela 1. O tempo médio de permanência na UTI dos pacientes que apresentaram IRA foi de 5 dias (DP ± 4), enquanto que dos que não a apresentaram foi de 4 dias (DP ± 2), não havendo diferença estatisticamente significativa entre estes pacientes (p=0,6411).




Entre as variáveis categóricas comparadas entre os grupos que apresentaram ou não IRA, houve diferença significativa nas seguintes: IMC > 25 kg/m2 (p=0,004) e uso de drogas inotrópicas ou vasoconstritoras no pós-operatório (p=0,048) - Tabela 2. As variáveis quantitativas foram comparadas estatisticamente e expressadas no Quadro 1. O tempo de CEC não apresentou diferença estatisticamente significativa (p=0,0668), entre os dois grupos.






Não houve diferença estatisticamente significativa na creatinina pré-operatória quando se compara pacientes com IRA e sem IRA (p = 0,4611), no entanto, houve diferença estatisticamente significativa no pós-operatório, do 1o ao 5o dia (p variando entre < 0,0001 a 0,0002). Considerando apenas a creatinina sérica pós-operatória em cada grupo, separadamente, não houve diferença estatisticamente significativa do 1o ao 5o dia, nos pacientes com IRA (p = 0,6709), e sem IRA (p = 0,7230) - Figura 1.


Fig. 1 - Média da creatinina sérica no pré-operatório (Pré-op) e pós-operatório (Pós-op) do 1o ao 5o dia, segundo a presença ou não de insuficiência renal (IRA), Hospital Universitário / UFMS, 2002-2004 (n=74)



Comparando-se a creatinina sérica pós-operatória e o tempo de circulação extracorpórea, através de regressão linear simples (b = 0,0037; t = 3,1797; p = 0,0022; R2 (ajustado) = 11,10%), apenas 11% da variável dependente (creatinina) é explicada pela variável independente (CEC). Isto significa que outras variáveis estão envolvidas no aumento da creatinina sérica após a cirurgia (Figura 2).


Fig. 2 - Creatinina sérica pós-cirúrgica em relação ao tempo de circulação extracorpórea, de pacientes com a presença ou não de insuficiência renal, Hospital Universitário / UFMS, 2002-2004 (n=74)



DISCUSSÃO

A IRA tem sido amplamente documentada como importante complicação no período pós-operatório da cirurgia de revascularização do miocárdio, haja vista o considerável aumento da morbi-mortalidade associada a este evento.

No presente estudo, foi constatada uma incidência de IRA de 24,32%, e mortalidade de 5,56% para os que a desenvolveram, sendo que na literatura estes valores variaram de 0,7% a 31% e 1,3% a 90%, respectivamente [2-14]. Vale ressaltar que os discrepantes valores das incidências devem-se, muitas vezes, aos diferentes critérios de definição de IRA utilizados. Na tentativa de não subestimar os vários graus de disfunção renal, utilizamos critérios mais rígidos do que alguns dos trabalhos analisados. A escolha da creatinina sérica como parâmetro de avaliação da função renal deveu-se ao fato de ser um exame de fácil execução e utilizado como rotina no serviço de cirurgia cardiovascular da UFMS.

Alguns estudos [3,5,11,14] demonstraram maior tempo de permanência hospitalar nos pacientes que evoluíram para IRA, aumentando a exposição destes a morbidades decorrentes do ambiente hospitalar, além dos custos de internação. Porém, neste trabalho, o tempo médio de permanência na unidade de terapia intensiva (UTI) dos pacientes que desenvolveram IRA foi 5 dias e dos que não a desenvolveram, 4 dias, não tendo esta diferença significância estatística (p= 0,6411).

Vários fatores têm sido relacionados na literatura científica com o aumento da incidência de lesão renal, sendo os mais importantes a utilização e o tempo de CEC [3-5,7,11,13]; idade [3,5,7,11]; função renal pré-operatória [3-5,7-11,22]; uso de drogas inotrópicas [11]; uso de furosemide intra-operatório [10] e comorbidades associadas, como diabetes [5,7], insuficiência cardíaca [5,7,8] e doença vascular periférica [8].

No presente estudo, a análise estatística de todos os prováveis fatores de risco demonstrou uma correlação do sobrepeso ou obesidade dos pacientes e o uso de drogas inotrópicas ou vasoconstritoras no pós-operatório - evidenciando a gravidade de alguns pacientes, devido a complicações, como disfunção ventricular - com a incidência de IRA após a cirurgia. Além disso, não foi observada relação entre comorbidades prévias e o desenvolvimento de IRA.

A relação entre a redução das médias diárias da PAM e PVC, no primeiro dia pós-operatório, e o aumento da creatinina sérica nestes pacientes refletiu a importância do mecanismo pré-renal, contribuindo para a deterioração da função renal pós-operatória. Segundo Mangano et al. [5], no período pós-operatório, o principal fator de risco para o desenvolvimento de disfunção renal foi a síndrome do baixo débito cardíaco e a instabilidade hemodinâmica, cujos indicadores foram hemorragia, uso de drogas inotrópicas e balão intra-aórtico. Tal estudo demonstrou que entre os pacientes com índice cardíaco menor que 1,5 l/min/m²., no dia da cirurgia, 20% desenvolveram IRA e entre os que apresentaram este índice no 1º dia pós-operatório 61% evoluíram para disfunção renal.

Neste estudo, o tempo de CEC não foi fator de maior importância na evolução para IRA, fato evidenciado por outros trabalhos [3-5,7,11,13]. Tentativas de explicar tal fenômeno têm sido controversas na literatura, atribuindo a IRA à redução do fluxo sangüíneo renal durante a CEC. Boldt et al. [13] concluíram que o tempo de CEC > 90 minutos foi o mais importante fator de risco para IRA, atribuindo o fato aos efeitos hipóxicos da perfusão sangüínea diminuída, que leva ao sofrimento e à morte das células tubulares proximais renais. Outros autores destacam ainda as alterações da homeostase das citocinas inflamatórias plasmáticas, sendo a maior filtração destas, possivelmente responsável por dano tubular [5,14-17].

Já Ascione et al. [6] observaram que, durante a CEC, houve aumento significante do clearance da creatinina no grupo de pacientes submetidos à CEC, devido ao mecanismo renal de auto-regulação, aumentando a capacidade de filtração glomerular. Entretanto, neste mesmo grupo, houve uma queda do clearance nos dias subseqüentes, acompanhada por um aumento da n-acetil-b glicosaminidase (NAG), importante marcador de lesão tubular renal, comprovando a influência do uso da CEC na fisiopatologia da IRA pós-operatória.

Deve-se ressaltar que a média do tempo de CEC no presente trabalho foi baixa (56,08 minutos) em relação aos demais estudos, embora alguns trabalhos tenham incluído outras modalidades de cirurgia cardíaca, além da revascularização miocárdica. Apenas um dos trabalhos analisados [6], que avaliou somente cirurgias de revascularização do miocárdio, forneceu dados sobre o tempo de duração da CEC, cuja média foi de 70,3 minutos.

No presente estudo, guardadas suas limitações, em função de se tratar de um estudo clínico, com análise de múltiplos fatores, pode-se concluir que a CEC não determinou impacto na ocorrência de IRA no pós-operatório de cirurgia de revascularização do miocárdio, provavelmente pelo baixo tempo médio de CEC no grupo estudado, o que também proporcionou baixa morbi-mortalidade e melhor evolução da função renal pós-operatória destes pacientes. O IMC aumentado se mostrou como fator de risco para o desenvolvimento de IRA, além do uso de drogas inotrópicas ou vasoconstritoras, em pacientes mais graves, que apresentaram disfunção ventricular. Todas as outras variáveis estudadas não se apresentaram como fator de risco na ocorrência de IRA para este grupo.

Embora ainda não se tenha, na literatura acessível, uma orientação específica quanto à profilaxia do desenvolvimento da IRA no pós-operatório de cirurgias cardíacas com uso de CEC, na presente investigação, pudemos observar um melhor prognóstico de função renal quando o tempo de CEC não for prolongado e quando uma adequada otimização do débito cardíaco no pós-operatório for alcançada.

Article receive on terça-feira, 10 de abril de 2007

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