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ARTIGO ORIGINAL

Estratégia cirúrgica na transposição das grandes artérias associada à obstrução do arco aórtico

Bayard GONTIJO FILHOI; Fernando Antonio FantiniII; Roberto Max LopesIII; Cristiane Nunes MARTINSIV; Eliana Guimarães HEYDENV; Erika Correa VrandecicVI; Mario Osvaldo Vrandecic PEREDOII

DOI: 10.1590/S0102-76382007000200005

RESUMO

Objetivo: Analisar nossa experiência no tratamento cirúrgico da transposição das grandes artérias (TGA) associada à obstrução do arco aórtico. Método: Entre janeiro de 1998 e dezembro de 2005, realizamos 223 operações de Jatene para correção de TGA: 21 (9,4%) pacientes apresentavam obstruções do arco aórtico. A anatomia do arco aórtico evidenciou: coarctação da aorta localizada (n=10); coarctação com hipoplasia tubular do arco aórtico (n=6); interrupção do arco aórtico (n=5). Comunicação interventricular (CIV): 19 pacientes (90,5%), sendo 11 do tipo Taussig-Bing. Desproporção importante entre aorta e artéria pulmonar e anomalias coronárias foram achados freqüentes. Houve 7 correções em dois estágios e 14 correções em um único estágio. A reconstrução do arco foi realizada por ressecção e anastomose término-terminal ampliada (13) ou por translocação da aorta ascendente (8). Resultados: Houve cinco (23,8%) óbitos hospitalares; apenas um (11,1%) nos últimos nove casos consecutivos. Reoperações no período hospitalar: revisão de hemostasia (5), CIV residual + coarctação não identificada (1), estenose residual de arco aórtico (1). Após a alta, houve dois óbitos e três pacientes foram submetidos a reintervenções para estenose da via de saída do ventrículo direito. Conclusão: O tratamento da transposição das grandes artérias associada à obstrução do arco aórtico apresenta alta complexidade e morbi-mortalidade. Empregamos as correções em um e em dois estágios, obtendo resultados comparáveis. Nossa preferência atual é pela correção precoce em um único estágio para todos os pacientes, independente de sua configuração anatômica.

ABSTRACT

Objective: To analyze our experience in the surgical correction of transposition of the great arteries associated with aortic arch obstruction. Method: From January 1998 to December 2005 we performed 223 arterial switch operations for transposition of the great arteries; 21 (9.4%) patients had associated aortic arch obstruction. Aortic arch anatomy showed: localized aortic coarctation (n=10) and coarctation with hypoplastic aortic arch (n=6) and interrupted aortic arch (n=5). Ventricular septal defect was present in 19 (90.5%) patients. Size discrepancy between the aorta and pulmonary artery and complex coronary artery anatomy were common findings. Surgical correction was performed in either one (14) or two stages (7). Aortic arch reconstruction was achieved either by resection and extended anastomoses (13) or by relocation of the ascending aorta (8). Results: Hospital mortality was 23.8% (n=5); with only one death (11.1%) among the last nine patients. Reoperations in the immediate post-operative period included: bleeding (5), residual ventricular septal defect and unrecognized coarctation (1) or residual stenosis of the aortic arch (1). There were two late deaths caused by fungal infections and reoperation for severe aortic regurgitation. Three patients underwent procedures to relieve right ventricular outflow tract obstruction. Two patients have slight to moderate aortic regurgitation. Conclusion: The surgical treatment of transposition of the great arteries with aortic arch obstruction is complex with high morbidity. Our present choice is one-stage treatment for all patients without using homologous or heterologous tissue for aortic arch reconstruction. We recommend resection and extended anastomoses for localized coarctation and relocation of the ascending aorta for hypoplastic or interrupted aortic arch.
INTRODUÇÃO

A obstrução do arco aórtico (OAA) é uma malformação relativamente freqüente em algumas formas de Transposição das Grandes Artérias (TGA) associadas à comunicação interventricular (CIV) e rara na TGA simples com septo interventricular intacto. Além de um prognóstico bastante desfavorável, esta associação apresenta uma abordagem cirúrgica complexa, que necessita um planejamento preciso para se obter um bom resultado.

Inicialmente, estes pacientes eram selecionados para correção cirúrgica em dois estágios com abordagem do arco aórtico no primeiro estágio, geralmente acompanhada de cerclagem da artéria pulmonar (AP). No segundo estágio, realizava-se a correção da TGA. Esta forma de tratamento apresentou resultados desfavoráveis com alta taxa de morbi-mortalidade [1].

A introdução da correção em um único estágio da TGA + OAA por Pigott, em 1988 [1], juntamente com o aprimoramento das técnicas de cirurgia neonatal estimulou vários centros a abandonar a correção em dois estágios, passando a adotar esta conduta, hoje prevalente na grande maioria dos serviços. Ainda assim, várias são as características destes pacientes que diretamente interferem no resultado pós-operatório imediato e tardio [2]. A característica anatômica da OAA, a maior incidência de anomalias coronárias, a discrepância de calibres entre a aorta (Ao) e a AP, a ocorrência de estenose subaórtica, a maior incidência de regurgitação aórtica a longo prazo, são alguns dos fatores que interferem diretamente na definição da técnica cirúrgica a ser utilizada e tornam este grupo de pacientes um desafio à equipe cirúrgica. Neste trabalho, procuramos analisar nossa experiência nos pacientes portadores de TGA + OAA, nos quais foram utilizadas tanto a correção em dois estágios quanto a correção simultânea, baseando os princípios da nossa conduta atual.


MÉTODO

No período de janeiro de 1998 a dezembro de 2005, foram realizadas, no Biocor Instituto, 223 operações de Jatene para tratamento da TGA, sendo que em 21 (9,4%) pacientes havia obstrução do arco aórtico concomitante. O diagnóstico pré-operatório foi realizado basicamente por estudo ecocardiográfico, sendo utilizado o cateterismo cardíaco em casos duvidosos ou quando necessitamos maior definição anatômica para escolha do procedimento cirúrgico. A grande maioria dos casos ocorreu em crianças portadoras de TGA com CIV ou com complexo tipo Taussig-Bing, sendo rara nos pacientes com TGA simples (Tabela 1).




A baixa incidência de obstrução do arco aórtico em TGA simples e alta incidência em Taussig-Bing apresentam significância estatística. A faixa etária dos pacientes variou de 6 a 88 dias (m= 27,5 dias), com predomínio do sexo masculino (75%). O peso corporal variou de 2,4 a 4,6 kg (m = 3,4 kg).

Com relação ao tipo de lesão obstrutiva do arco aórtico, identificamos 10 casos de coarctação da aorta localizada, seis casos de coarctação associada a hipoplasia tubular do arco aórtico e cinco casos de interrupção do arco aórtico (Figura 1). Para definição de hipoplasia tubular do arco aórtico que necessita abordagem cirúrgica, utilizamos o critério adotado por Karl et al. [3], que relacionam o diâmetro do arco aórtico ao peso corporal do paciente. A anatomia coronária dos 21 pacientes foi identificada segundo a classificação de Yacoub et al. [4]. A incidência da distribuição coronária clássica (tipo IA) foi de 57,1% . Esta incidência foi significativamente inferior à encontrada no restante do grupo de pacientes (n=202) submetidos à cirurgia de Jatene (76,7%) - p=0,43. Outro achado anatômico freqüente entre os pacientes foi a desproporção acentuada entre o calibre da AP e da Ao, presente em 76,2% dos casos.


Fig.1 - TGA + obstrução do arco aórtico - anatomia do arco aórtico



Técnica cirúrgica

Foram empregadas duas estratégias na abordagem da transposição associada à obstrução do arco aórtico; a correção em dois estágios e a correção em um único estágio. A escolha do procedimento cirúrgico variou de acordo com o período do estudo e fundamentou-se, basicamente, na experiência adquirida com o manuseio destas crianças e suas características anatômicas. A correção em dois estágios prevaleceu nos primeiros anos em crianças portadoras de coarctação localizada. A correção em um único estágio foi indicada, principalmente, nos pacientes com arco aórtico hipoplásico ou interrompido, sendo prevalente no período mais recente.

A Figura 2 demonstra a freqüência de utilização de ambas as técnicas ao longo de nossa experiência. Para efeito comparativo, os dados demográficos dos 21 pacientes foram divididos segundo a técnica empregada (Tabela 2).





Fig 2. - TGA + obstrução do arco aórtico - estratégia cirúrgica x tempo de correção




Correção em dois estágios

A abordagem cirúrgica em dois estágios foi utilizada em sete pacientes. Em seis crianças, a correção foi realizada eletivamente, sendo a coarctação abordada no primeiro estágio por toracotomia esquerda. A técnica empregada foi de ressecção da área coarctada e anastomose término-terminal ampliada à base do arco aórtico. Apenas uma destas crianças apresentava hipoplasia do arco aórtico, porém foi possível sua ampliação com extensa mobilização da aorta descendente e do arco aórtico. A cerclagem da AP não foi associada em nenhum paciente.

O segundo tempo para correção anatômica da TGA ocorreu em um intervalo que variou de 3 a 10 dias (m = 6,7 dias), sendo todos realizados no mesmo período de internação. A técnica de correção anatômica da TGA seguiu os princípios habituais utilizados por nosso grupo, já tendo sido descrita previamente [5]. Em um paciente, a correção da coarctação foi realizada após a operação de Jatene, já que o diagnóstico não foi evidenciado na avaliação pré-operatória. Este caso não segue os mesmos parâmetros da correção em dois estágios clássica, mas é importante ser considerado para evidenciar as dificuldades encontradas no diagnóstico pré-operatório em alguns pacientes.

Correção em um único estágio

Esta técnica foi prevalente nos últimos anos de nossa experiência. A preparação para correção simultânea da TGA + OAA foi a mesma utilizada na operação de Jatene habitual, acrescentando-se uma segunda cânula de perfusão no canal arterial nos pacientes portadores de interrupção do arco aórtico. Induzimos hipotermia profunda (18º C) para abordagem inicial do arco aórtico utilizando-se um período curto de parada circulatória total (tempo médio = 16,5 min). Duas técnicas foram empregadas para reconstrução do arco aórtico. A ressecção com anastomose término-terminal ampliada à base do arco aórtico foi empregada em seis pacientes e a translocação da aorta ascendente, técnica descrita por Liddicoat et al. [6], em 1994, nos outros oito pacientes (Figura 3).


Fig 3 - TGA + obstrução do arco aórtico - translocação da aorta ascendente



A técnica de ressecção com anastomose término-terminal foi utilizada basicamente nos casos de coarctação da aorta localizada, com bom desenvolvimento do arco aórtico. Em apenas uma criança, a hipoplasia tubular do arco aórtico foi subestimada, resultando em estenose residual significativa, que necessitou correção no pós-operatório imediato com "flap" reverso de artéria subclávia esquerda. A técnica de translocação da aorta ascendente foi utilizada inicialmente nos pacientes portadores de TGA, com interrupção do arco aórtico. Posteriormente, ampliamos a sua utilização, passando a utilizá-la também para os pacientes com hipoplasia importante do arco aórtico.

Para translocação da aorta, realizamos a secção da aorta ascendente em um nível proximal, logo acima das comissuras da valva aórtica. Após ampla mobilização dos ramos cervicais, realizamos a anastomose término-terminal, entre o coto distal da Ao ascendente com a Ao descendente, após ressecção da área coarctada. A reconstrução da via de saída do VE foi completada com a anastomose da AP à face ventral da Ao ascendente. Em todos os casos, utilizamos a manobra de Lecompte. Terminada a reconstrução do arco aórtico, o fluxo arterial foi restabelecido ao normal e a temperatura elevada a 28ºC, completando-se, então, o procedimento cirúrgico.

A desproporção acentuada entre a Ao e a AP foi abordada de duas maneiras. Inicialmente, fazíamos a ampliação da aorta ascendente com pequeno retalho de pericárdio autólogo, adaptando-a ao maior calibre da AP ou aumentando a incisão na face ventral da Ao, nos casos de translocação. Ultimamente, temos realizado a redução da AP com ressecção de segmento da parede arterial do seio de Valsalva posterior. Desta forma, remodela-se a raiz neoaórtica, diminuindo seu calibre e a região sino-tubular, visando a reduzir a incidência de insuficiência aórtica. A esternorrafia secundária foi empregada em 13 (61,9%) dos 21 casos, número este significativamente maior do que encontrado em toda série de cirurgia de Jatene (p < 0,01). Ressalte-se que em nenhum dos 21 pacientes foi utilizado tecido homólogo, heterólogo ou protético para reconstrução do arco aórtico.

O teste "t" de Student foi empregado para avaliar comparativamente os grupos quanto aos dados qualitativos. Os dados estão expressos na forma de mediana ou média ± desvio padrão. O nível de significância estabelecido para análise foi de 5%.


RESULTADOS

Mortalidade hospitalar

Correção em dois estágios

Houve dois (28,6%) óbitos no período pós-operatório imediato. O primeiro ocorreu no paciente cuja coarctação da aorta foi descoberta no pós-operatório da correção anatômica da TGA. Ela evoluiu com insuficiência cardíaca refratária, quando foi diagnosticada a coarctação, além de uma CIV residual, sendo reoperada no 6º DPO para correção dos dois problemas. No pós-operatório, apresentou síndrome de baixo débito, bloqueio AV total e insuficiência renal, vindo a falecer no dia seguinte. O segundo óbito ocorreu em uma criança com anatomia coronária tipo IIID de Yacoub [4], na qual tivemos dificuldade per-operatória no reimplante da artéria coronária, que exigiu revisão da anastomose. Ela permaneceu com o esterno aberto por três dias, quando demonstrou condições favoráveis para fechamento. No 8ºDPO, apresentou alteração eletrocardiográfica súbita, evoluindo para parada cardíaca em assistolia sem recuperação. As outras cinco crianças evoluíram sem maiores intercorrências no período pós-operatório.

Correção em um único estágio

Houve três (21,4%) óbitos hospitalares neste grupo, sendo o primeiro deles causado por obstrução do tubo endotraqueal, no 3º DPO. O segundo óbito ocorreu em uma criança que apresentou crise de hipertensão pulmonar e sangramento aumentado no P.O. imediato, com importante repercussão hemodinâmica, permanecendo com o esterno aberto até o 6ºDPO, quando foi reaproximado. Evoluiu bem até o 10ºDPO, quando desenvolveu pneumotórax hipertensivo com hipoxemia e parada cardíaca refratária às manobras de ressuscitação. O último óbito ocorreu em uma criança submetida a translocação da Ao ascendente, que apresentou hemorragia grave na 5ª hora de PO, originada no ângulo distal da anastomose da AP com a Ao.

Entre as crianças sobreviventes, outras três foram submetidas a revisão de hemostasia, todas realizadas na UTI. Uma outra criança já citada previamente, submetida a ressecção com anastomose término-terminal, evoluiu com baixo débito, oligúria, sendo detectada estenose residual ao nível do arco aórtico. Foi reoperada no 2º DPO, com alargamento do arco aórtico com remendo de artéria subclávia esquerda (Walhausen reverso), com ótima evolução. Nos últimos nove pacientes, todos submetidos a correção simultânea, houve melhora do resultado cirúrgico com apenas um (11,1%) óbito hospitalar.

Evolução tardia

Foram observados dois óbitos após a alta hospitalar, ambos em pacientes submetidos à técnica de correção simultânea. O primeiro ocorreu em uma criança portadora de TGA com interrupção do arco aórtico que apresentou insuficiência aórtica progressiva a partir do 5º mês PO, instalando-se insuficiência cardíaca importante. Ela foi reoperada no 6º mês PO, sendo realizada plastia da válvula sistêmica, permanecendo, entretanto, com insuficiência valvar moderada. Evoluiu com disfunção ventricular importante, falecendo no 1º DPO.

O segundo óbito ocorreu em uma criança também com IAA, que apresentou pós-operatório complicado por sepse após longa estadia na UTI. Após a alta hospitalar, apresentou reinfecção pulmonar por fungo, vindo a falecer no 2º mês PO. Na evolução tardia, três crianças portadoras de Taussig-Bing foram submetidas à revisão da via de saída do VD, todas com mais de três anos de evolução. O primeiro paciente foi reoperado com colocação do conduto entre o VD e TP devido à presença de artéria coronária direita cruzando a via de saída do VD. As outras duas crianças foram submetidas a dilatação por balão, com bom resultado imediato.

Do grupo total de 21 pacientes, seguem atualmente em controle ambulatorial 14 pacientes, dos quais cinco com translocação da aorta ascendente e nove com ressecção e anastomose término-terminal. A dilatação da raiz neoaórtica é um achado relativamente freqüente entre eles, porém apenas dois pacientes evoluem com insuficiência aórtica leve a moderada e os demais com regurgitação discreta ou ausente. Todos apresentam boa evolução clínica, sem distúrbios neurológicos e sem evidências de reestenose aórtica significativa.


DISCUSSÃO

A presença de obstrução do arco aórtico é rara em pacientes portadores de transposição das grandes artérias com septo interventricular intacto, ocorrendo com maior freqüência na TGA com CIV, sendo muito comum nos casos de Taussig-Bing. A freqüência entre todos pacientes com TGA é da ordem e 8-10%, demonstrando a importância desta associação [2]. Apesar dos avanços alcançados na técnica cirúrgica e nos cuidados intensivos do pós-operatório, o tratamento da associação de TGA com OAA continua sendo de alta complexidade. A definição da melhor estratégia cirúrgica (um ou dois estágios), bem como a presença de variações anatômicas relacionadas à anatomia do arco aórtico, à distribuição coronariana, ao posicionamento e à desigualdade dos vasos da base e da via de saída do VD, são fatores importantes na escolha do melhor procedimento e determinantes do resultado imediato e tardio.

Correção em dois estágios x Correção em um único estágio

Os pacientes portadores de TGA + OAA eram inicialmente selecionados para correção em dois estágios, sendo que esta estratégia prevaleceu até o início da última década. No primeiro estágio desta técnica, abordava-se a OAA por toracotomia esquerda, sendo associada, na maioria das vezes, a cerclagem de AP. A correção intracardíaca ocorria geralmente meses depois. A mortalidade hospitalar com esta abordagem registrou índices muito elevados, da ordem de 31% a 64% [7,8]. Os principais fatores para esta alta mortalidade foram: a presença de hipoplasia tubular do arco em um número significativo de pacientes, os efeitos deletérios da cerclagem da AP e a morbi-mortalidade acumulada com os dois procedimentos.

A correção em um único estágio foi introduzida por Pigott et al. [1], que a utilizaram em cinco pacientes. Planche et al. [7], em 1993, confirmaram o melhor resultado obtido com a correção simultânea quando compararam a sua experiência com as duas estratégias. Desde este período, houve uma tendência crescente à adoção da correção simultânea como técnica de escolha na TGA com OAA [9,10].

Tivemos oportunidade de utilizar ambas estratégias de tratamento ao longo de nossa experiência. A correção em dois estágios foi a técnica mais empregada nos primeiros anos, quando acreditávamos ser menos complexa e mais segura do que a correção simultânea. Diferentemente dos relatos publicados previamente, nossos casos de correção em dois estágios foram programados para serem realizados durante um único período de internação, com um intervalo curto entre os dois procedimentos. Também por este mesmo motivo não associamos a cerclagem da AP em nenhum paciente. O intervalo médio entre os dois estágios foi de 6,7 dias.

Obtivemos um bom resultado com esta estratégia, não havendo mortalidade nos cinco pacientes iniciais. O sexto paciente operado eletivamente por esta técnica faleceu após a correção anatômica, devido a problema técnico no reimplante coronariano. O outro paciente que faleceu não se caracteriza com o grupo de dois estágios clássico, já que a abordagem da OAA ocorreu após a correção anatômica, devido ao não reconhecimento da coarctação na avaliação pré-operatória.

A mortalidade hospitalar de 16,6% dos seis pacientes operados eletivamente e a ausência de complicações tardias observadas nesta experiência com a correção em dois estágios confirma ser esta uma alternativa válida para alguns pacientes portadores de TGA + OAA. Com o diagnóstico de casos com anatomia mais complexa do arco aórtico, desfavoráveis à correção em dois estágios, passamos a empregar a correção simultânea, que foi a técnica prevalente nos últimos anos. Com a experiência adquirida, a correção simultânea passou a ser utilizada em todos os pacientes com TGA + OAA. Com esta estratégia, foram operados 14 pacientes, sendo observados três óbitos, dos quais apenas um pode ser relacionado diretamente à técnica empregada. Nos últimos dois anos, foram operados, consecutivamente, nove pacientes com a correção simultânea, sendo observado apenas um óbito, reduzindo a mortalidade para 11,1%.

Nossa opção atual para abordagem da TGA com obstrução do arco aórtico é a correção simultânea, em função dos melhores resultados e da maior experiência acumulada nos últimos anos. Acreditamos que a correção em dois estágios possa ser uma alternativa válida, principalmente para pacientes portadores de coarctação da aorta localizada, já que a presença de hipoplasia tubular do arco, quando abordada por toracotomia, apresenta índice elevado de reestenose aórtica [2,7]. Nos pacientes com coarctação localizada, obtivemos bons resultados quando optamos por esta estratégia, abreviando o intervalo entre os estágios e também evitando a cerclagem da AP. Também para alguns pacientes portadores de lesão neurológica ou aqueles com evidência de infecção ativa, a correção em dois estágios pode ser uma alternativa válida, protelando-se o segundo tempo para ser realizado após melhor definição do quadro clínico [8].

Reconstrução do arco aórtico

Várias são as técnicas propostas para reconstrução do arco aórtico, sendo a anatomia da obstrução o principal fator determinante na sua escolha. A coarctação da aorta com um bom desenvolvimento do arco aórtico pode ser abordada com resultado satisfatório pela técnica clássica de ressecção com anastomose ampliada [7]. Esta técnica pode ser realizada tanto por toracotomia esquerda, no primeiro estágio, como também pela esternotomia, durante os casos de correção simultânea. Conforme já comentamos, a presença de hipoplasia tubular do arco aórtico é um fator anatômico desfavorável à técnica clássica de ressecção.

A definição de qual hipoplasia tubular do arco aórtico deverá ser abordada cirurgicamente é um fato controvertido. Sabemos que o restabelecimento do fluxo anterógrado pela Ao ascendente, em pacientes com circulação preferencial pelo canal arterial, propicia o desenvolvimento normal do arco em muitos pacientes com arco aórtico hipoplásico. Em alguns pacientes, a hipoplasia pode não regredir e persistir como fator obstrutivo no pós-operatório.

O julgamento pré-operatório é, portanto, muito importante e vai influir diretamente na decisão da escolha do procedimento a ser empregado. Utilizamos a proposta de Karl et al. [3], que relaciona o calibre do arco aórtico ao peso corporal da criança. Se o diâmetro do arco transverso medido pelo ecocardiograma é inferior à soma do peso corporal + 1, opta-se pela abordagem cirúrgica. Por exemplo, em uma criança de 3 kg, se o arco aórtico for inferior a 4 mm (3 + 1) ele é considerado hipoplásico. Mesmo assim, em um paciente nosso, foi necessária reoperação ainda no pós-operatório imediato para correção da estenose residual significativa do arco por quantificação inadequada da hipoplasia. Este fato demonstra a dificuldade, às vezes, encontrada na avaliação pré-operatória.

Uma vez definida a abordagem cirúrgica da hipoplasia tubular, temos utilizado para sua correção a técnica da translocação da aorta ascendente descrita por Liddicoat et al. [6], em 1994, para casos de TGA associada à IAA. Outros autores advogam a ampliação do arco e da Ao ascendente com homoenxerto [10] ou com pericárdio autólogo [11] para correção da hipoplasia tubular. A técnica de translocação, além de ser aplicável tanto nos casos de hipoplasia tubular do arco aórtico como nas interrupções do arco aórtico, é realizada sem utilização de remendos autólogos ou homólogos, que no futuro poderão calcificar, trazendo grandes complicações para o paciente. A seleção da técnica de reconstrução do arco aórtico está atualmente bem estabelecida no nosso grupo e é definida pela anatomia do arco aórtico. Nos casos de coarctação localizada, indicamos a ressecção com anastomose ampliada e, nos pacientes com hipoplasia ou interrupção do arco aórtico, utilizamos a translocação da aorta ascendente. Com esta abordagem, não há registro de recoarctação em nenhum dos nossos pacientes sobreviventes.

Lesões residuais tardias

Os pacientes com TGA e obstrução do arco aórtico que sobrevivem à correção cirúrgica apresentam um maior índice de reintervenções e de lesões residuais tardias do que os pacientes submetidos à correção da TGA sem alterações do arco aórtico. A principal lesão residual encontrada é a estenose da via de saída do VD, sendo a própria anatomia e não a técnica cirúrgica a sua principal causa. O desvio anterior e para direita do septo interventricular observado em pacientes com Taussig-Bing e em alguns casos de TGA + CIV pode resultar em hipoplasia do VD, acometendo a região subaórtica . Além disto, trabeculações hipertróficas septo-parietais e inserções anormais das valvas atrioventriculares podem contribuir na geração de gradientes subpulmonares [12]. Identificamos, nos nossos pacientes sobreviventes (n = 14), três casos de reestenose significativa da via de saída do VD.

Uma criança foi reoperada devido à natureza tubular da sua obstrução, com colocação de conduto VD-TP, devido à presença de grande artéria coronária direita cruzando a via de saída. Outros dois pacientes foram submetidos a valvuloplastia por balão, com melhora do quadro hemodinâmico e seguem em controle pela possibilidade de recidiva. O outro achado freqüente na evolução tardia destes pacientes é a dilatação da raiz neoaórtica e a maior incidência de regurgitação aórtica [13]. A regurgitação aórtica, apesar de leve na maioria dos pacientes, preocupa por ter caráter progressivo. Vários fatores têm sido relacionados ao aparecimento de regurgitação aórtica após a correção anatômica da TGA, tais como a técnica de reimplante coronário [14] e a técnica de fechamento da CIV [13].

Acreditamos que a grande dilatação do tronco pulmonar submetida continuamente à pressão sistêmica após a correção leva a um afastamento progressivo da região sino-tubular, com conseqüente regurgitação valvar. A avaliação ecocardiográfica e angiográfica pós-operatória destes pacientes evidenciam, na grande maioria, uma dilatação significativa da raiz neoaórtica. Um dos nossos pacientes portadores de TGA + IAA evoluiu em curto espaço de tempo para grave IAÔ, que necessitou reintervenção no 6º mês pós-operatório.

Há aproximadamente um ano, passamos a reduzir o calibre da AP em crianças com desproporção significativa Ao/Ap, ressecando-se um fragmento da parede arterial ao nível da comissura posterior. Desta forma, conseguimos um melhor remodelamento da raiz neoaórtica, o que acreditamos que poderá ser um fator preventivo no desenvolvimento de regurgitação valvar. O seguimento até o presente momento destes pacientes apresenta uma boa evolução ecocardiográfica, com uma região sino-tubular mais uniforme e com boa coaptação dos folhetos valvares. Aguardamos maior tempo de acompanhamento para comparação deste grupo com os pacientes operados anteriormente para definirmos a real validade do procedimento.

Limitações do estudo

O presente trabalho inclui 21 pacientes consecutivos de uma cardiopatia complexa e infreqüente. Isto representa uma população relativamente pequena para análise estatística, com um tempo de seguimento pós-operatório curto. Além disto, a presente experiência não seguiu uma linha de protocolo linear, tendo as duas estratégias de tratamento sido empregadas sem um critério rígido de seleção. De qualquer maneira, são cirurgias tecnicamente muito complexas e a comparação entre os resultados observados ao longo da experiência pode não ser muito precisa. Apesar de adotarmos a correção simultânea como nossa conduta atual, acreditamos que a correção em dois estágios pode ser uma opção válida para alguns pacientes e talvez para hospitais com menor experiência na correção de cardiopatias complexas no período neonatal.

A abordagem da TGA associada à obstrução do arco aórtico é complexa e apresenta muitas variáveis que interferem no resultado final do tratamento cirúrgico. Nossa opção atual é pela correção simultânea sem utilização de tecidos homólogos ou heterólogos na reconstrução do arco aórtico, sendo indicada a ressecção com anastomose término-terminal nos pacientes com coarctação da Ao localizada e a translocação da Ao ascendente nos pacientes portadores de hipoplasia ou interrupção do arco aórtico.


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