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RELATO DE CASO

Amaurose bilateral irreversível pós-cirurgia cardíaca

Valdir Cesarino de Souza0; Alex Barbosa0; Basílio Serrano de Sousa Filho0; Kleber Oliveira de Souza0

DOI: 10.1590/S0102-76382004000300011

INTRODUÇÃO

A perda total ou parcial da visão pós-correção de defeitos cardíacos sob circulação extracorpórea (CEC) é rara e pouco elucidada. Sua incidência varia de 0,1% a 1% [1-4]. Porém, quando tal complicação se torna irreversível, sua incidência ainda é mais rara, 0,04% [2]. Embora tal alteração visual seja resultante de diversos fatores, a mesma está freqüentemente associada a sangramentos cirúrgicos com queda acentuada da pressão arterial sistêmica, tempo elevado de CEC, microembolias, entre outras [4,5]. Seu tratamento é bastante controverso segundo a literatura, contudo a precocidade com que é feito o diagnóstico é essencial para um bom prognóstico [4].

O objetivo deste trabalho é relatar um caso de perda bilateral e irreversível da visão pós-correção de uma cardiopatia congênita.

RELATO DE CASO

Paciente do gênero feminino, 16 anos de idade, normolínea, encaminhada ao serviço de cardiologia com queixas freqüentes de palpitações e cansaço aos médios esforços, com piora progressiva, sobretudo nos últimos meses.

Ao exame físico apresentava-se em regular estado geral, afebril, acianótica, levemente dispnéica. À ausculta cardíaca denotava-se o ritmo cardíaco irregular, segunda bulha desdobrada, com freqüência de 92 b.p.m. e leve sopro sistólico em foco pulmonar. A pressão arterial era de 110 x 70 mmHg; o restante da avaliação semiológica, normal.

O exame radiológico evidenciava leve aumento da área cardíaca às custas do ventrículo direito, enquanto que o eletrocardiograma apresentava ritmo sinusal com algumas extrassístoles supraventriculares, além de distúrbio da condução do ramo direito.

Encaminhada ao setor de ecocardiografia e, posteriormente, ao serviço de hemodinâmica, constatou-se uma má formação cardíaca acianótica, com hiperfluxo pulmonar, tipo comunicação interatrial (CIA), localizada ao nível da fossa oval, com cerca de 2,5 cm de diâmetro, e pressões em câmaras direitas levemente aumentadas. Após análise dos dados, foi recomendado o tratamento cirúrgico.

O ato operatório realizou-se sob anestesia geral e toracotomia mediana transesternal. Após estabelecimento da CEC, realizou-se atriotomia direita. A CIA foi visualizada conforme indicavam os exames e a mesma foi ocluída com retalho de pericárdio bovino. O átrio foi suturado, a perfusão extracorpórea cessada e o restante da operação proferida conforme o habitual. Tanto o ato operatório como o anestésico transcorreu dentro da normalidade. O tempo de CEC foi de 32 minutos e o de anóxia de 26 minutos.

Durante as três primeiras horas de pós-operatório, verificou-se que a paciente apresentava sangramento insidioso (cerca de 6 ml/kg de peso). Optou-se inicialmente por correções dos distúrbios de coagulação pertinentes ao ato operatório, além da reposição volêmica e uso de drogas vasopressoras. Como o sangramento persistiu, desenvolveu-se instabilidade do quadro hemodinâmico com hipotensão acentuada e choque hipovolêmico. Diante do quadro, a revisão hemostática foi desencadeada sendo suturada uma tributária da veia braquiocefálica esquerda; tal procedimento transcorreu sem alterações significativas.

Estabilizado o quadro cirúrgico, pós-correção operatória do sangramento, a paciente retornou ao centro de tratamento intensivo, estável hemodinamicamente, sem necessidade de novas transfusões e/ou drogas vasoativas.

Poucas horas após a extubação, a doente referiu embaçamento visual bilateral com a perda progressiva da visão e fortes dores em ambos os globos oculares. Solicitou-se o parecer de um especialista, o qual realizou fundoscopia bilateral evidenciando edema acentuado dos discos ópticos, e tonometria, denotando aumento da pressão intra-ocular. Diante desses dados, iniciou-se o uso de corticóide e diurético osmótico (manitol). Mesmo com a terapia instituída, o que se observou foi a perda progressiva da visão.

Além dos exames oftalmológicos habituais, foram realizados: tomografia computadorizada, ressonância magnética, ultra-sonografia ocular, dentre outros, que constataram, 21 dias após a correção da cardiopatia congênita, atrofia bilateral irreversível dos nervos ópticos conseqüente à isquemia posterior.

Dois anos após o desencadeamento dessa complicação cirúrgica, novos exames foram realizados confirmando mais uma vez a atrofia acentuada bilateral de ambos nervos ópticos e amaurose bilateral definitiva.

COMENTÁRIOS

Apesar de rara, a perda da visão pós-cirurgia cardíaca é bem documentada e sua incidência varia de 0,1% a 1% [1-4]. No entanto, dados da literatura concluem que a incidência de amaurose bilateral definitiva é cerca de 0,04% [2].

A vascularização do nervo óptico difere de acordo com sua localização: a porção anterior é basicamente vascularizada pelos ramos distais das artérias ciliares posteriores e a porção posterior pela artéria central da retina, local este onde o nervo óptico é mais vulnerável à isquemia, sendo, portanto, a região mais freqüentemente acometida por esta alteração, sobretudo naqueles pacientes que desenvolvem hemorragias associadas à hipotensão pós-cirúrgica. Por conseguinte, a amaurose resultante da isquemia do nervo óptico varia de acordo com a instalação da lesão, podendo ser classificada em neuropatia anterior e posterior [4].

Algumas das causas relatadas na literatura para a perda visual pós-cirurgia cardíaca incluem: isquemia anterior ou posterior do nervo óptico, lesões corticais, trombose arterial e/ou venosa retiniana, entre outras [4,5].

Os principais fatores de risco para o desencadeamento de neuropatia óptica pós-cirurgia cardíaca são: paciente portador de glaucoma ou outro problema oftalmológico, cirurgia com tempo de CEC prolongado, excessiva hemodiluição, hipotermia sistêmica prolongada, sangramento pós-operatório acentuado e a necessidade de medicações vasoconstrictoras, que predispõem à lesão do nervo óptico [3,6].

Diversos autores chamam atenção para o fato da isquemia ser decorrente principalmente de hipotensão arterial, hipotermia sistêmica prolongada e ativação de certos complementos durante a CEC, como angiotensina e serotonina [2,5].

A suspeita da isquemia do nervo óptico é dada quando o paciente relata perda visual, total ou parcial. Seu prognóstico depende da precocidade com que se faz o diagnóstico, além da extensão e localização da isquemia [4]. Vários exames são preconizados para o esclarecimento dessa complicação óptica, desde o exame oftalmoscópico direto até outros como a ressonância magnética e a tomografia computadorizada [4].

Existem várias divergências entre autores no que se refere ao tratamento da cegueira como conseqüência de cirurgia cardíaca, enquanto alguns [4] preconizam o uso de altas doses de esteróides, antiagregantes plaquetários, inibidores da anidrase carbônica e operação para descompressão do nervo óptico; outros [6] concluíram que nenhum desses procedimentos se comprovou eficaz no tratamento dessa complicação, sobretudo no que se refere à fenestração do nervo óptico [3,6]. Contudo, estas podem ser consideradas medidas profiláticas que devem ser tomadas para evitar a isquemia e lesão irreversível do nervo óptico [6].

CONCLUSÃO

Instalada a amaurose pós-cirurgia cardíaca, o índice de cura é bastante baixo, sobretudo se as medidas profiláticas e as condutas terapêuticas não forem observadas. Mesmo com tais procedimentos, torna-se quase impossível para as equipes preverem o desencadeamento desta temida complicação, principalmente devido a transtornos inerentes ao ato cirúrgico e às variações anatômicas existentes na vascularização do globo ocular.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Shahian DM, Speert PK. Symptomatic visual deficits after open heart operations. Ann Thorac Surg 1989;48:275-9.
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2. Sweeney PJ, Breuer AC, Selhorst JB, Waybright EA, Furlan AJ, Lederman RJ et al. Ischemic optic neuropathy: a complication of cardiopulmonary bypass surgery. Neurology 1982;32:560-2.
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3. Shapira OM. Kimmel WA, Lindsey PS, Shahian DM. Anterior ischemic optic neuropathy after open heart operations. Ann Thorac Surg 1996;61:660-6.
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4. Williams EI, Hart JrWM, Tempelhoff R. Postoperative ischemic optic neuropathy. Anesth Analg 1995;80:1018-29.
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5. Roth S, Barach P. Postoperative visual loss: still no answers - yet. Anesthesiology 2001;95:575-7.
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6. Busch T, Sirbu H, Aleksic I, Stamm C, Zenker D, Dalichau H. Anterior ischemic optic neuropathy: a complication after extracorporal circulation. Ann Thorac Cardiovasc Surg 1998;4:354-8.
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Article receive on domingo, 1 de fevereiro de 2004

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